Acho que para começar, nada mais justo do que informar a vocês os perigos de se atravessar o universo da imaginação: você pode querer ficar por lá! Não, não estou brincando. Você pode se sentir tão sozinho no mundo real, que a fantasia será seu único recurso de sanidade, e é aí que mora o perigo, pois para as pessoas do mundo real você se tornará insano! Meu conselho: equilíbrio é tudo. Deixe as divagações para detrás das cortinas, ou para alguém em quem confia muito e que entenda que esta é sua maneira de encarar as coisas - não tente convencer ninguém, apenas mostre para ele as inúmeras possibilidades. Afinal, tudo o que temos hoje em nossas vidas foi sonho um dia, não foi? Jogue suas pistas; às vezes você encontra sonhadores e divagadores como você onde menos espera (eu já encontrei um num restaurante: era um jovem garçom que me atendia e sentia uma vontade enorme de falar sobre o livro que eu estava lendo, que ele gostaria de ler também!).
Estou explicando isto por causa da história a seguir. Se aconteceu? não sei dizer. Chegou até a mim pelas mãos da noite. Porque todos nós um dia nos sentimos perdidos na escuridão, não é mesmo?!
Estou explicando isto por causa da história a seguir. Se aconteceu? não sei dizer. Chegou até a mim pelas mãos da noite. Porque todos nós um dia nos sentimos perdidos na escuridão, não é mesmo?!
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Houve uma vez uma mulher que não
conseguiu crescer. Não, ela não ficou presa em um corpo de criança como aquele
ser de cabelos espetados e roupa verde que todos conhecem; seu corpo
amadureceu, sua mente evoluiu, mas ela não conseguiu se adaptar.
E sofreu.
E
seu sofrimento atravessou as fronteiras do mundo conhecido e alcançou uma
amizade antiga, aquela que temos somente quando crianças, e que depois se esvai
como a bruma da manhã: tão de repente, que duvidamos se ela alguma vez estivera
presente.
Seres oníricos são puros e
inocentes. Não são capazes de compreender a diversidade dos sentimentos, os sentem
cada qual de cada vez. Quando aquele chamado o atingiu,
o alado ser onírico só teve compaixão, e esquecida de todas as regras de
que homens acima da puberdade não devem entrar no mundo místico, levou a mulher
de volta ao paraíso de sua infância. Lá, ela voltou a sorrir; somente lá, ela
conseguia ser feliz. Não pesaram, no entanto, as consequências de suas ações para
o mundo real. Ninguém via a amiga acompanhar a mulher enquanto esta caminhava
pelas ruas; aos olhares alheios, parecia que esta falava sozinha. Em um mundo
onde a imaginação é ceifada cada vez mais cedo, nem mesmo as crianças eram
capazes de ver a amiga esvoaçante. A mulher por sua vez passava a maior parte
do dia esperando o próprio adormecer, quando seria levada para o outro mundo. Aos
olhos dos outros, isto não era normal.
Então eles chegaram. Com seus uniformes brancos, arrancaram a mulher de seu mundo maravilhoso. Convenceram-na de que ela era uma má influência, e que tudo era obra da sua imaginação. Deram-lhe remédios e um quarto novo em um lugar onde gritos ensurdecedores ecoavam durante a noite. Eram seus ou eram dos outros? Às vezes não sabia... Passou a ter medo de dormir, para que seus sonhos não a enganassem novamente: lhe disseram que só sairia daquele lugar se afirmasse que sua amiga não era real. Mas como podia ser saudosa de algo que não existia? Sentia falta de sua amiga, e em seu íntimo sabia que com o fechar de seus olhos os portões daquele universo mágico abrir-se-iam outra vez: ela correria para lá, era fato, e lá seria esquecida.
“-Ela tinha medo de dormir
“-Ela tinha medo de dormir
- Por quê?
- Por
que quando ela dormia, viajava para mundos sequer imagináveis por alguém.
- Mas o que isto tem de mais? Acontece com
todos nós: chama-se sonho.
- Não, com ela era diferente. O fechar de
seus olhos eram a chave que abria o portal para enviá-la a um universo
desconhecido. Seus sonhos eram reais. E se ela se perdesse por lá, estaria perdida
para sempre.”
A mulher sofria, a amiga sofria. Em
seu mundo místico fora condenada a não atravessar o véu entre os mundos. Estava
morrendo, não pela sua condenação, mas pelo amor e pela negação daquela que
outrora fora a mais doce criança com quem brincara. Estava conformada. Somente
vivia por que a mulher ainda acreditava nela. Quando isto deixasse de
acontecer, ser-lhe-ia fatal.
Ambas esperavam.
Um dia, ouviu-se um chamado urgente,
tão desesperado, que atravessou todas as fronteiras existentes. “Por favor,
venha me salvar”
Então a amiga se foi.
Era uma bonita manhã de sábado
quando os homens de uniforme branco a encontraram. Os raios de sol
insinuavam-se através da cortina e talvez por isso o rosto da mulher estivesse
tão corado. Ainda dormia. Dormia e sorria. Tinha nas mãos o símbolo antigo da
Aliança entre Deus e os homens, que também era o símbolo dos seres místicos.
Só parecia, mas na realidade mulher
não dormia. Ela sequer estava ali. Corria com sua amiga onírica pelas terras
esquecidas na memória de sua infância, perdida para sempre naquele mundo
encantado de onde nunca deveria ter saído.
Os homens então fecharam a cortina,
cobriram seu rosto e finalmente a deixaram brincar em paz.