quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Bolinhas de Gude Azuis


Às vezes fazemos coisas estúpidas em nossas vidas. Grandes ou pequenas, essas “coisas estúpidas” nos acompanham para sempre.

Era verão de 1982. Aquela estrutura estranha pairava na praia do Arpoador onde eu e meus amigos costumávamos mergulhar na infância. Mas enquanto alguns vibravam ao som de “areias escaldantes” eu, um ex-“menino do Rio” suava em um terno entregando despachos para cima e para baixo, nas quentes ruas cariocas, da zona norte à zona sul. Eu era ambicioso, e aos vinte e poucos anos já tinha um apartamento micro em Copacabana, bem longe da praia é verdade, mas era em Copacabana. Apesar da adolescência festeira, a ditadura fez-me  ingressar cedo no mercado de trabalho, e ao contrário da maioria das mentes jovens daquela época, que gritavam por liberdade e ordem, eu só queria uma melhor condição de vida para poder aproveitar a vida sem passar por necessidades no dia seguinte. 

Assim, trabalhava com afinco. Até o dia em que ela cruzou o meu caminho e mudou meu modo de pensar.

Encerrava meu último expediente antes das merecidas férias, após quase 7 anos trabalhando e estudando sem  parar. Estava cansado, mas ansioso; não planejara nada em especial além de praia, chope, um show aqui outro ali, essas coisas. Caminhava assobiando para casa, retardando cada passo e aproveitando o descompromisso, sentindo a liberdade, observando as crianças brincando nas ruas próximas ao meu prédio – naquela época era comum ver crianças divertindo-se na rua durante o verão. Havia uma menininha de vestido xadrez e um laço frouxo pendurado no cabelo que tentava em vão acompanhar a correria das outras crianças. Cheguei em casa, tomei um banho demorado e abri uma cerveja – a única da geladeira - e me joguei no sofá. Mas a noite estava bonita e resolvi caminhar na praia. Qual não foi minha surpresa quando, em frente à portaria, sentada nos degraus da escada, estava a mesma menininha de vestido vermelho que eu vira mais cedo?  Aparentava mais ou menos dois anos e estava suja de tanto brincar. Perguntei ao porteiro quem eram seus pais  e ele disse que não havia reparado que havia uma criança ali. Fui até ela e perguntei-lhe onde estava sua mãe mas não me respondeu. Tinha um olhar parado, atento à rua, como à espera de alguém. Não parecia assustada nem perdida: tinha a segurança e a certeza de que alguém logo logo viria buscá-la.

Entenda: eu poderia ter partido. Poderia ter feito minha caminhada, tomado mais algumas cervejas na praia, enfim, seguido o que decidira fazer. Mas aí esta história não aconteceria. O fato é que  fiquei ali sentado ao lado daquela menina, cuja imobilidade e cachinhos castanhos a balançar na brisa faziam-na parecer uma boneca de porcelana. Era intrigante estar sentada quieta por tanto tempo, sem demonstrar um mínimo de desassossego. O porteiro se aproximou de nós, trocou comigo algumas palavras, disse que nunca a tinha visto, que poderia ser de alguma visita dos prédios vizinhos. “Mas as crianças há muito deixaram a rua e ninguém viera reclamar a menina!”, falei. Ele deu de ombros e voltou para seu lugar. As pessoas passavam, entravam no prédio, sorriam, acenavam, e ela toda poucos gestos: um inclinar de cabeça, um meio aceno com a mão, um sorriso tímido para o próprio colo... e tornava a mirar a rua. Uma vizinha nova chegou a me perguntar se era minha: “Não, estamos esperando a mãe dela!!” respondi assustado. Filhos não faziam parte dos meus planos. Mas as horas passavam e ninguém aparecia. A menina suspirava e esperava. Já havia lhe levado água, lhe dado biscoitos, mas ela não falava e  eu não sabia mais o que fazer. Percebi que o porteiro estava impaciente querendo fechar o prédio, mas só quando vi sua cabecinha tombar para frente, de sono, é que cedi à pressão: tomei-a no colo e a levei pra casa.

Um homem acolher uma criança de dois anos em seu apartamento não era visto com tanta maldade naquela época graças à Deus, por isto nada de ruim passou pela minha cabeça; eu só queria protegê-la. O porteiro falou que ia dar problemas, mas ele mesmo foi testemunha que a criança estava sozinha há muito tempo sem que ninguém aparecesse. Disse que avisaria caso alguém chamasse reclamando pela criança e isso me tranquilizou, deu-me a certeza de que fazia a coisa certa. Naquela noite eu a acomodei em minha cama e fui dormir no sofá, um sono sobressaltado, à espera de que alguém batesse na porta. Mas ninguém bateu.

No dia seguinte fui até a delegacia dar parte de criança encontrada. Os procedimentos eram menos eficientes que agora – a nossa boa e velha burocracia. Esperamos por algumas horas até sermos encaminhados ao conselho tutelar. A manhã não havia sido boa, pois ela acordou assustada e eu que não tinha nada em casa para uma criança comer acabei socorrido pelos vizinhos. Ao chegarmos no conselho ela estava inquieta em meu colo, suspirava e se agitava a qualquer manifestação de deixá-la sentada longe de mim. Tive que preencher a papelada com ela agarrada em meu pescoço; segundo as normas, seria encaminhada para um lar adotivo. No momento em que a levaram ela gritou muito, mas eu sabia que seria conduzida para onde cuidariam bem dela. Eu saía do local certo de que havia cumprido com meu dever de cidadão, quando me chamaram de volta.  “Desculpe, senhor, sabemos que não tem o perfil adequado para ficar com uma criança mas todos os nossos lares estão cheios por causa das crianças perdidas no Reveillon...” foi dizendo a assistente. Eu pressupus aonde ela queria chegar, e quando me dei conta, depois de um “sim” e mais um monte de papéis, voltava com a menina para casa.

A esta altura os mais românticos devem estar me parabenizando, dizendo “nossa, que gesto altruísta ele teve!” mas a verdade é que até hoje não sei o que me levou a aceitar aquela oferta. Eram minhas férias e eu teria uma criança desconhecida em casa! Eu, que vivia para o trabalho, que não conseguia manter uma namorada sem analisar as despesas que isto traria para o meu bolso, tinha em meu tapete um bebê que só corria e sabia fazer coco (era 1982, fraldas descartáveis não eram tão acessíveis!). Eu não tinha paciência com crianças, na verdade nunca prestara muita atenção nelas além do necessário. E no entanto, ela estava ali.

 Como seria minha hóspede, comprei-lhe brinquedos e roupas. Aos poucos ela foi se soltando e começou a falar  - falar não, porque eu não entendia nada!Tentei lhe ensinar alguma coisa mas ela não aprendia. Os vizinhos souberam da história e se revezaram entre ajudar com sugestões úteis e oferecimentos prestativos e informações inúteis com comentários pejorativos. Mas à noite éramos só eu e ela em um apartamento micro de uma cidade escaldante. Semanalmente um assistente social ia nos visitar, tomava notas, perguntava se havia problemas em ela ficar mais um pouco e ia embora. Para ajudar eu coloquei um  um anuncio no jornal dando seus dados e meu endereço, mas depois que um casal lunático bateu em minha porta, achei melhor deixar a busca pelos responsáveis por conta do Conselho Tutelar!

Um mês se passou e eu resolvi contratar uma babá. Não recebia nenhuma notícia positiva e como tinha que voltar a trabalhar não podia levá-la comigo. Minha rotina tornara-se acordar, mamadeira, trabalho, casa. No retorno ao lar  a babá ia embora deixando todos os brinquedos espalhados. Um dia me deu uma bronca por não saber o nome da garota e só a chamava de Menina: como ela respondia, passei a chamar também. Mas acordar as cinco para mamadeiras, chegar tarde no serviço, chegar à tempo em em casa para dar janta, ficar acordado até tarde da noite repondo serviços atrasados estava me deixando com olheiras até os pés. Ela estava me deixando louco, e por vezes achava que a . odiava,  mais que tudo no mundo. Porém não queria tirar ela daqui.

Finalmente, seis meses após ter feito o boletim sobre ela, recebi uma intimação do Conselho Tutelar, pois os seus responsáveis haviam sido encontrados. Era um casal jovem, de olhos claros também, vestidos como se tivessem saídos do Festival de Woodstock. Falavam inglês, língua que não dominava na época mas por sorte havia uma interprete que me explicou que o casal perdera a menina na rodoviária. Então viram o anuncio antigo que eu mandara publicar no jornal, mas a agência solicitou que procurassem no conselho. Eles tinham os papéis certos, os documentos certos. Ela se jogou nos braços deles como quem revê velhos amigos, e como velhos amigos,  levaram na embora.
Naquele domingo levantei às cinco para preparar a mamadeira. quando percebi que não havia o que se preparar, ela havia partido. O apartamento finalmente estava silencioso. Tentei voltar à dormir  mas não consegui e me perguntava aflito se até não estando lá ela me atormentava. Lembrei-me de quando chegava em casa depois de um dia cansativo e aquelas bolinhas de gude azuis me olhavam pedindo um pouco da minha atenção e eu as ignorava. Olhei as horas, dava tempo: me arrumei e corri para o aeroporto. Maldito taxi, maldito trânsito, malditas horas. Quando cheguei no aeroporto já era tarde: o avião estava partindo, ela estava indo e eu não podia fazer nada.

Quando comecei este texto falando de coisas estúpidas na certa deverão estar imaginando que a coisa estúpida que eu fiz foi, sem experiência alguma, ficar responsável por aquela criança. Mas não; a estupidez pela qual me condeno é de não ter tomado o contato daquelas pessoas que levaram minha criança embora. Até hoje me pergunto se ela sente frio, se está contente, se se lembrou de falar “ombush” quando viu um, se sentiu a minha falta. Hoje aquele bebê que despertou em mim o desejo de ter uma família deve ter sua própria família, senão seus próprios netos, considerando a juventude de hoje em dia.

Naqueles dias odiei-me por nunca ter lhe falado ou apenas demonstrado o quanto eu apreciava a sua presença.. Se eu pudesse revê-la, se eu pudesse voltar no tempo... ah, tantos “sês”... De todos eles a única certeza é a de não revê-la nunca mais!

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Aurora

Philip Pullman certa vez disse ao publicar um de seus contos que um conto ás vezes pode ser simplesmente um conto, uma história isolada, ou fazer parte de um romance que ainda não foi escrito. Como pequenas histórias de vidas paralelas que se cruzam, pequenos contos podem ser entrelaçados e se tornarem uma grande história.

Se é o caso do pequeno conto a seguir, só o tempo responderá...

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O tempo parou. No espaço nada se movia. Todos permaneciam em silencio absoluto; tudo se encontrava em absoluta espera. Até que enfim ela chegou. Tranquila, serena, encantou a todos com sua pureza infantil. Sim, ela era linda, e era para todos a joia mais rara do universo.

Terminada a exposição, bocejou. Estava cansada. Era tanta novidade em torno de si que ela mal conseguiu acompanhar, mas queria ver a todos. Sua mãe, a Noite, suavemente a carregou até seu dormitório e a pôs em seu cesto de dormir. Enquanto sua loura cabecinha era acariciada, suas pálpebras iam suavemente escondendo as pérolas azuis que eram seus olhos. E embalada por uma canção de ninar, dormiu, sob os olhares atenciosos do pai e da mãe.

Aquela foi a única vez em todos os tempos que não houve dia nem noite, apenas apenas a mistura de uma escuridão que não clareava e claridade que não escurecia.

Assim foi o dia que a belíssima Aurora nasceu.