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Às vezes fazemos coisas estúpidas em
nossas vidas. Grandes ou pequenas, essas “coisas estúpidas” nos acompanham para
sempre.
Era verão de 1982. Aquela estrutura
estranha pairava na praia do Arpoador onde eu e meus amigos costumávamos
mergulhar na infância. Mas enquanto alguns vibravam ao som de “areias
escaldantes” eu, um ex-“menino do Rio” suava em um terno entregando despachos
para cima e para baixo, nas quentes ruas cariocas, da zona norte à zona sul. Eu
era ambicioso, e aos vinte e poucos anos já tinha um apartamento micro em
Copacabana, bem longe da praia é verdade, mas era em Copacabana. Apesar da
adolescência festeira, a ditadura fez-me
ingressar cedo no mercado de trabalho, e ao contrário da maioria das mentes
jovens daquela época, que gritavam por liberdade e ordem, eu só queria uma
melhor condição de vida para poder aproveitar a vida sem passar por
necessidades no dia seguinte.
Assim, trabalhava com afinco. Até o dia em que ela cruzou o meu caminho e mudou meu modo de pensar.
Encerrava meu último expediente antes
das merecidas férias, após quase 7 anos trabalhando e estudando sem parar. Estava cansado, mas ansioso; não
planejara nada em especial além de praia, chope, um show aqui outro ali, essas
coisas. Caminhava assobiando para casa, retardando cada passo e aproveitando o
descompromisso, sentindo a liberdade, observando as crianças brincando nas ruas
próximas ao meu prédio – naquela época era comum ver crianças divertindo-se na
rua durante o verão. Havia uma menininha de vestido xadrez e um laço frouxo
pendurado no cabelo que tentava em vão acompanhar a correria das outras crianças.
Cheguei em casa, tomei um banho demorado e abri uma cerveja – a única da
geladeira - e me joguei no sofá. Mas a noite estava bonita e resolvi caminhar
na praia. Qual não foi minha surpresa quando, em frente à portaria, sentada nos
degraus da escada, estava a mesma menininha de vestido vermelho que eu vira
mais cedo? Aparentava mais ou menos dois
anos e estava suja de tanto brincar. Perguntei ao porteiro quem eram seus pais e ele disse que não havia reparado que havia
uma criança ali. Fui até ela e perguntei-lhe onde estava sua mãe mas não me
respondeu. Tinha um olhar parado, atento à rua, como à espera de alguém. Não
parecia assustada nem perdida: tinha a segurança e a certeza de que alguém logo
logo viria buscá-la.
Entenda: eu poderia ter partido. Poderia
ter feito minha caminhada, tomado mais algumas cervejas na praia, enfim, seguido
o que decidira fazer. Mas aí esta história não aconteceria. O fato é que fiquei ali sentado ao lado daquela menina,
cuja imobilidade e cachinhos castanhos a balançar na brisa faziam-na parecer
uma boneca de porcelana. Era intrigante estar sentada quieta por tanto tempo,
sem demonstrar um mínimo de desassossego. O porteiro se aproximou de nós,
trocou comigo algumas palavras, disse que nunca a tinha visto, que poderia ser
de alguma visita dos prédios vizinhos. “Mas as crianças há muito deixaram a rua
e ninguém viera reclamar a menina!”, falei. Ele deu de ombros e voltou para seu
lugar. As pessoas passavam, entravam no prédio, sorriam, acenavam, e ela toda
poucos gestos: um inclinar de cabeça, um meio aceno com a mão, um sorriso
tímido para o próprio colo... e tornava a mirar a rua. Uma vizinha nova chegou
a me perguntar se era minha: “Não, estamos esperando a mãe dela!!” respondi
assustado. Filhos não faziam parte dos meus planos. Mas as horas passavam e
ninguém aparecia. A menina suspirava e esperava. Já havia lhe levado água, lhe
dado biscoitos, mas ela não falava e eu não
sabia mais o que fazer. Percebi que o porteiro estava impaciente querendo
fechar o prédio, mas só quando vi sua cabecinha tombar para frente, de sono, é
que cedi à pressão: tomei-a no colo e a levei pra casa.
Um homem acolher uma criança de dois
anos em seu apartamento não era visto com tanta maldade naquela época graças à
Deus, por isto nada de ruim passou pela minha cabeça; eu só queria protegê-la.
O porteiro falou que ia dar problemas, mas ele mesmo foi testemunha que a
criança estava sozinha há muito tempo sem que ninguém aparecesse. Disse que
avisaria caso alguém chamasse reclamando pela criança e isso me tranquilizou,
deu-me a certeza de que fazia a coisa certa. Naquela noite eu a acomodei em
minha cama e fui dormir no sofá, um sono sobressaltado, à espera de que alguém
batesse na porta. Mas ninguém bateu.
No dia seguinte fui até a delegacia dar parte de criança encontrada. Os procedimentos eram menos eficientes que agora – a nossa boa e velha burocracia. Esperamos por algumas horas até sermos encaminhados ao conselho tutelar. A manhã não havia sido boa, pois ela acordou assustada e eu que não tinha nada em casa para uma criança comer acabei socorrido pelos vizinhos. Ao chegarmos no conselho ela estava inquieta em meu colo, suspirava e se agitava a qualquer manifestação de deixá-la sentada longe de mim. Tive que preencher a papelada com ela agarrada em meu pescoço; segundo as normas, seria encaminhada para um lar adotivo. No momento em que a levaram ela gritou muito, mas eu sabia que seria conduzida para onde cuidariam bem dela. Eu saía do local certo de que havia cumprido com meu dever de cidadão, quando me chamaram de volta. “Desculpe, senhor, sabemos que não tem o perfil adequado para ficar com uma criança mas todos os nossos lares estão cheios por causa das crianças perdidas no Reveillon...” foi dizendo a assistente. Eu pressupus aonde ela queria chegar, e quando me dei conta, depois de um “sim” e mais um monte de papéis, voltava com a menina para casa.
A esta altura os mais românticos
devem estar me parabenizando, dizendo “nossa, que gesto altruísta ele teve!”
mas a verdade é que até hoje não sei o que me levou a aceitar aquela oferta.
Eram minhas férias e eu teria uma criança desconhecida em casa! Eu, que vivia
para o trabalho, que não conseguia manter uma namorada sem analisar as despesas
que isto traria para o meu bolso, tinha em meu tapete um bebê que só corria e
sabia fazer coco (era 1982, fraldas descartáveis não eram tão acessíveis!). Eu
não tinha paciência com crianças, na verdade nunca prestara muita atenção nelas
além do necessário. E no entanto, ela estava ali.
Como seria minha hóspede, comprei-lhe
brinquedos e roupas. Aos poucos ela foi se soltando e começou a falar - falar não, porque eu não entendia nada!Tentei
lhe ensinar alguma coisa mas ela não aprendia. Os vizinhos souberam da história
e se revezaram entre ajudar com sugestões úteis e oferecimentos prestativos e
informações inúteis com comentários pejorativos. Mas à noite éramos só eu e ela
em um apartamento micro de uma cidade escaldante. Semanalmente um assistente
social ia nos visitar, tomava notas, perguntava se havia problemas em ela ficar
mais um pouco e ia embora. Para ajudar eu coloquei um um anuncio no jornal dando seus dados e meu
endereço, mas depois que um casal lunático bateu em minha porta, achei melhor
deixar a busca pelos responsáveis por conta do Conselho Tutelar!
Um mês se passou e eu resolvi contratar uma babá. Não recebia nenhuma notícia positiva e como tinha que voltar a trabalhar não podia levá-la comigo. Minha rotina tornara-se acordar, mamadeira, trabalho, casa. No retorno ao lar a babá ia embora deixando todos os brinquedos espalhados. Um dia me deu uma bronca por não saber o nome da garota e só a chamava de Menina: como ela respondia, passei a chamar também. Mas acordar as cinco para mamadeiras, chegar tarde no serviço, chegar à tempo em em casa para dar janta, ficar acordado até tarde da noite repondo serviços atrasados estava me deixando com olheiras até os pés. Ela estava me deixando louco, e por vezes achava que a . odiava, mais que tudo no mundo. Porém não queria tirar ela daqui.
Finalmente, seis meses após ter
feito o boletim sobre ela, recebi uma intimação do Conselho Tutelar, pois os seus
responsáveis haviam sido encontrados. Era um casal jovem, de olhos claros também,
vestidos como se tivessem saídos do Festival de Woodstock. Falavam inglês,
língua que não dominava na época mas por sorte havia uma interprete que me
explicou que o casal perdera a menina na rodoviária. Então viram o anuncio
antigo que eu mandara publicar no jornal, mas a agência solicitou que procurassem
no conselho. Eles tinham os papéis certos, os documentos certos. Ela se jogou
nos braços deles como quem revê velhos amigos, e como velhos amigos, levaram na embora.
Naquele domingo levantei às cinco
para preparar a mamadeira. quando percebi que não havia o que se preparar, ela
havia partido. O apartamento finalmente
estava silencioso. Tentei voltar à dormir mas não consegui e me perguntava aflito se até
não estando lá ela me atormentava. Lembrei-me de quando chegava em casa depois
de um dia cansativo e aquelas bolinhas de gude azuis me olhavam pedindo um
pouco da minha atenção e eu as ignorava. Olhei as horas, dava tempo: me arrumei
e corri para o aeroporto. Maldito taxi, maldito trânsito, malditas horas. Quando
cheguei no aeroporto já era tarde: o avião estava partindo, ela estava indo e
eu não podia fazer nada.
Quando comecei este texto falando de
coisas estúpidas na certa deverão estar imaginando que a coisa estúpida que eu
fiz foi, sem experiência alguma, ficar responsável por aquela criança. Mas não;
a estupidez pela qual me condeno é de não ter tomado o contato daquelas pessoas
que levaram minha criança embora. Até hoje me pergunto se ela sente frio, se
está contente, se se lembrou de falar “ombush” quando viu um, se sentiu a minha
falta. Hoje aquele bebê que despertou em mim o desejo de ter uma família deve
ter sua própria família, senão seus próprios netos, considerando a juventude de
hoje em dia.
Naqueles dias odiei-me por nunca
ter lhe falado ou apenas demonstrado o quanto eu apreciava a sua presença.. Se
eu pudesse revê-la, se eu pudesse voltar no tempo... ah, tantos “sês”... De todos eles a única certeza é a de
não revê-la nunca mais!