Já ouviu uma música e se descobriu criando uma história para encaixá-la? Como se tivesse criando seu próprio clipe para ela?
Então, com alguns escritores isto acontece constantemente. Basta ouvir alguns versos e lá está a vida inteira de um personagem.
Esta é a terceira história que escrevi baseada em uma música. Deveria ser publicada em agosto mas resolvi antecipar. Ela não pede uma introdução como as outras. É completa por si só.
Enfim, ainda com poucos minutos de folga...
*****************************************************************************
Ela limpava o jardim quando uma brisa suave trouxe-lhe o
cheiro do passado, da pequena casa vermelha onde vivera, a última em uma vila
do subúrbio. Aquela época, que muitos considerariam difícil pela sua situação de
poucos recursos, ela considerava como o auge de sua felicidade. Afinal, naqueles
tempos, ela ainda tinha sua filha.
- Que dia é hoje? – perguntou ao jardineiro
- Hoje é dia 22 de agosto, senhora.
Sim, agora entendia o porquê da recordação. Amanhã é 23. O
dia do aniversário de sua filha. Aquela que criara e educara, isenta de
clichês, com todo carinho, dedicação e amor que aqueles que não tiveram mães ou
as tiveram ausentes poderiam ofertar. E ainda assim, perdera sua filha para o
mundo.
Era uma criança quieta e muito educada, o que lhe era motivo
de orgulho. Nunca reclamara da falta de presentes no Natal, muito menos da
pouca comida. Sorria resignada e dizia com convicção “um dia vou tirar nós duas
deste lugar”. A pobre mãe sentia o coração apertar por não poder dar mais à
filha. Seu corpo já não sustentava mais as jornadas duplas de trabalho, mas
não esmorecia; chegar em casa e ser servida pelo modesto, porém apetitoso
jantar que a filha lhe preparava com mais uma nota 10 no boletim lhe fazia crer
que todo o esforço valia á pena. Viviam em um castelo sem rei. Seu tesouro não
estava escondido em cofres mas no pulsar do coração de sua filha.
Ela não sabe precisar quando tudo começou a ruir. Aos treze
a menina bateu o pé e decidiu ir trabalhar. O dinheiro à mais auxiliaria nas
contas e daria descanso á mãe nos finais de semana. De fato, o corpo da mulher
não aguentava mais as faxinas de domingo à domingo, mas ainda assim foi com muita
relutância que aceitou. Tinha um profundo medo das más companhias que sua filha
poderia encontrar, afinal, sabia tão pouco da vida... ou será que sabia?
Aconteceu que a jovem não se envolveu com más companhias,
não usou drogas nem ficou grávida precocemente. Manteve-se aplicada nos estudos
e competente em seu trabalho, sem nunca reclamar. Quando a mulher adoeceu a
jovem tomou o lugar da mãe, provendo-a de tudo que necessitavam e um pouco
mais: a casa fora consertada, móveis novos foram comprados, porém, o sorriso da
filha, foi transformando-se em um esgar triste e cansado.
“Está acontecendo alguma coisa querida?”
“Não mamãe, apenas estou trabalhando demais!”
“Assim que eu melhorar volto a trabalhar e você poderá
descansar!”
“Não mamãe, não quero que você faça isso. Já trabalhou
demais por mim, deixe-me agora fazer isso pela senhora”
Aquelas palavras comoviam a pobre senhora. Porém
incomodavam-lhe a solidão e a quietude de sua filha.
“Você nunca traz os seus amigos aqui”
“Não quero lhe dar trabalho mamãe!”
Foi então que o homem chegou. A mulher nunca o vira de fato,
apenas pelas fotos que a filha espalhara no quarto. A jovem estava feliz, a
mulher também. Mas ao perguntar quando veria o tal, a breve resposta era a
mesma: “quando ele puder”. O anel surgiu no dedo da filha de repente. “Ele não deveria
vir aqui falar comigo?”. “Mamãe, os tempos são outros! A senhora está feliz por
mim não está?”.
O casamento aconteceu poucos meses depois. Tão de repente,
que a mãe não fora convidada. “Ele não quis festa mamãe!”. Sim, ele não quis
festa. Mas por que não pode ajudar a filha a escolher um vestido – não que o
vestido escolhido não fosse deslumbrante com suas pedrarias e finíssimos
detalhes bordados! – e daquelas pessoas estranhas nas fotos da cerimônia? “Precisávamos
de testemunhas mamãe”
A filha saíra de casa em uma daquelas chuvosas manhãs de
novembro, sem levar uma peça de roupa sequer. Disse que retornaria para
buscá-las, mas quando voltou foi para deixar a mãe doente em uma casa de
repouso. “Entenda, eu não posso ficar com a senhora, não teria como cuidá-la em
minha casa. Aqui eles poderão auxiliá-la e nada irá lhe faltar!”. Este fato acontecera há anos. Inicialmente a filha ia visitá-la todos os meses, mas com
o tempo as visitas tornaram-se escassas, contornadas através de cartas; que não
tardaram a rarear também. Na mais recente visita – não tão recente assim! – a mulher olhou profundamente para a filha e comparou-a com o retrato da mesma que
tinha em sua cabeceira, quando aquela era mais jovem. A filha sempre fora
uma pessoa quieta, isso não se podia negar, porém havia uma aura de serenidade
ou determinação ao seu redor, dependendo da situação. A mulher em sua frente
não apresentava isto.
“Você é feliz, minha filha?”
A pergunta pareceu surpreender a filha
“Como não poderia ser? Tenho um ótimo marido, dois filhos
maravilhosos, uma bela casa... como não ser feliz?”
A senhora suspirou: não, sua filha não era feliz. Havia nela
um ar de superioridade e arrogância que não lhe pertencia. E tristeza. Tristeza
camuflada, enterrada no fundo da alma para que ninguém visse, ninguém
percebesse, em seu falar altivo e sua seriedade. O que sua filha se tornou,
quem era aquela mulher á sua frente?
“Quando vou conhecer as crianças?”
“Ora mamãe você sabe, elas são ocupadas. E meu marido não
gosta que eu as traga aqui”
“Mas você ainda é a mãe, não é? Se quiser pode muito bem
trazê-las”
A filha nada respondeu. Simplesmente fitou o vazio e deixou
seu olhar perder-se ali por alguns segundos. Despediu-se da mãe e até então não
apareceu mais.
De repente, algo pareceu clarear do portão, libertando a
senhora de sua viagem ao passado. A miopia não lhe permitia distinguir traços,
mas ali estava uma jovem, trazendo duas crianças consigo. A luz do sol ia de
encontro á eles, fazendo-os parecer um afresco italiano. As crianças correram
de encontro à senhora no jardim e um sorriso plácido iluminou o rosto da jovem mulher
que chegava.
“ - Trouxe-lhe as crianças mamãe!”
Eles se abraçaram, e o coração da senhora encheu-se de
alegria. Mas ao abrir os olhos, percebeu que continuava sozinha no jardim,
exceto pelo jardineiro. Uma brisa quente passou por ela, e levou o passado
embora.
- Eu tenho uma filha sabia? Ela mora em uma casa grande muito
bonita, com um marido maravilhoso e meus dois netos. Amanhã é 23? É... amanhã é
aniversário dela. Faz 30 anos... acho que vou separar estas flores para ela,
quem sabe ela vem me visitar?
O jardineiro sorriu e continuou a preparar a terra do
jardim, Há muitos anos que trabalhava naquela casa, naquele asilo, e há muitos
anos ouvia conversas como aquela. Ficaria feliz pela senhora se sua filha
aparecesse.
Mas, como já foi dito, há muito tempo que ele ouve histórias
assim...