domingo, 25 de outubro de 2015

Saga Crepúsculo - Supernova

Em 2005 a autora Stephenie Meyer lançava para o mundo o primeiro de uma série de livros sobre um romance sobrenatural. Seus vampiros purpurinados e lobisomens testosteronizados arrebataram os corações de milhares de adolescentes na época, impulsionados também pela franquia de filmes originada destas histórias. E lá se foram 10 anos de fãs histéricas, atores que aproveitaram a crista da onda, autores que fizeram suas versões da histórias em muitas sátiras e muitas, muitas fanfics, como a história a seguir

Escrita em 2010 para um concurso promocional, a história a seguir coloca "um ponto a mais" no drama criado pela autora. Se a Saga Crepúsculo se perpetuará tal qual os livros da Anne Rice, só futuro poderá dizer. Mas histórias são histórias. E um ponto final nunca existe, para aqueles que tem muita imaginação...


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O sinal da última aula tocou, e eu fiquei feliz em me preparar para sair. Era aula de Educação Física, e apesar de, modéstia à parte, ser boa em tudo que eu faço, não suportava os olhares cobiçosos do professor Newton – aquele mesmo, que fora apaixonado pela minha mãe na adolescência dele (já que agora ela era uma eterna adolescente). Aliás, dos amigos humanos da minha mãe, apenas ele permaneceu ali; Ângela casara-se com Ben e juntos montaram uma produtora de filmes em Seatle (e foi, durante dezessete anos, bombardeada de fotos do meu “crescimento”, graças aos inúmeros registros feitos por tia Rosalie e Tia Alice nos meus primeiros meses de vida!). Já o Sr. Newton casara-se e divorciara-se de Jessica – agora repórter em New York, dividindo um apartamento com Lauren - tão rápido quanto a passagem de um cometa. Não pude deixar de perceber seu rosto iluminar-se quando fez a chamada e confirmou quem eu era, Rénesmee Carlie Swan Cullen - Nessie para os íntimos, - filha de Edward e Bella Cullen, mas o brilho apagou-se quando viu meu adorável e gigante namorado vir me buscar, em sua reluzente moto negra depois da aula. Havia o perigo do Sr. Newton reconhecer o rosto dele, mas quantos filhos não nascem a cara dos pais? Era a desculpa perfeita.
            - Vinte anos e as coisas parecem iguais por aqui! – Jacob falava por sob os ombros, enquanto dirigia – Esse aí perdeu mais uma Swan!
        
         Eu ri aninhada em suas costas. Vinte anos e finalmente pude retornar a Forks, para meus avôs e meus lobos. As desculpas de ser sobrinha de Edward não estavam funcionando, à medida que eu cresci rápido demais e ficava cada vez mais parecida com Bella. Jacob partiu conosco e eu tive que aprender a chamar meus pais por seus primeiros nomes, já que aparentávamos a mesma idade. Mas ali em Forks, passados tantos anos, eu podia ser quem eu era: a terceira geração dos Cullens. Nenhum dos mais velhos voltara comigo, era arriscado demais. Mas Jacob, tão imortal quanto eu, pode fazê-lo, abusando do papel de filho de si próprio. Agora, partíamos para La Push, para mais uma noite de fogueiras sob a luz do luar.
            
             Enquanto vovô Black alternava as lendas com os outros anciãos, olhei para a alcatéia a minha volta. Todos tranqüilos e felizes, inclusive Leah, a beta de Jacob: tinha ao seu lado a razão da própria felicidade e um dos motivos por estarmos juntos ali. Éramos uma lenda viva e nossa história seria imortalizada. A minha eu sei de cor, mas hoje falaremos da história de Leah.

Aconteceu logo depois da quase guerra com os Volturi – por minha causa, diga-se de passagem. Leah foi até os jardins dos Cullen falar com Jacob; queria pedir permissão para partir. Lembrou à ele o acordo que fizeram, que não o atrapalharia e tentaria livrar-se da forma de lobo. Por fim demonstrou o quanto seria doloroso voltar para o grupo de Sam. Estava praticamente implorando, quando meu pai saiu da casa, conversando com Emmett, Carlisle e Nahuel, o jovem imortal filho de pai vampiro e mãe humana. Leah ficou perturbada. Edward parou sua conversa, olhando intrigado de um grupo para o outro.

­- Jacob, - falou Leah, sem tirar os olhos deles. Outros Cullens aproximavam-se, inclusive eu, uma criança de poucos meses que aparentava 6 anos no colo de Huilen, tia de Nahuel – Por favor, ordene que  eu não volte mais!

Jacob ficou surpreso, depois furioso com o comportamento dela, que julgava de uma falta de educação sem fim.

- Ora, se não pode suportá-los desapareça daqui!!

Leah fechou os olhos e agradeceu, correndo logo em seguida e deixando-nos sem entender. Por um longo tempo não a vimos, nem soubemos dela, exceto pelas ligações esporádicas que dava para Sue e Seth, então novo Beta de Jacob – Quil e Embry se matariam se ele escolhesse qualquer um dos dois! E lá em casa o assunto Leah só surgia porque meu pai perguntava a qualquer um que morasse em La Push. Seth o tranqüilizava, dizendo que ela parecia bem: apesar de não se transformar mais, ainda era uma loba, ainda podiam senti-la.

Leah reapareceu na reserva num dia de ação de graças, muito abatida. Apesar da alegria sincera de seus irmãos, disse a Jacob que não se demoraria muito, apenas queria matar as saudades. Mais tarde a saudade apertou, pois vira e mexe ela estava de volta, coincidentemente quando havia alguma festa lá em casa produzida por tia Alice, que reunia alguns vampiros amigos. Mas Jacob não impedia a sua partida, pois julgava que ela se esforçava, mas definitivamente não era feliz enquanto ficava por aqui.

- Jacob – disse meu pai – esqueça Nessie um pouco e preste mais atenção na única fêmea de sua alcateia!

Lancei um olhar fulminante para o meu pai. Jacob me esquecer, como assim?! Eu já tinha seis anos – e para minha espécie, já era adulta. Jacob não era mais minha babá, meu irmão mais velho, meu amigo; agora ele era meu namorado, meu prometido.

- Não é nada disso, Nessie!... – Edward tentou apaziguar – É que... bem, apenas prestem a atenção nela!

Havia algo que ele sabia e não queria contar. E o mistério esclareceu-se meses depois, numa visita dos mapuches. Nahuel contava uma de suas aventuras na floresta, quando deparou-se com um animal gigantesco a observá-lo. Pensou em atacá-lo, mas havia algo de familiar nele, que o fez lembrar-se dos lobos de La Push. Enquanto ele falava, meu pai ficou petrificado, e pediu que Jacob ordenasse que Leah fosse até a casa.

- Ei, sanguessuga, você não manda em mim, muito menos na minha alcateia! – Jacob protestou. Mas Edward simplesmente ergueu as sobrancelhas e o encarou, praticamente implorou e Jacob, percebendo a urgência, assentiu. Leah estava ali cinco minutos depois. Sabíamos que ela era veloz, mas sua chegada em tempo recorde nos surpreendeu.

- Ela não estava na reserva, – Edward respondeu meus pensamentos - estava rondando aqui como loba. Só se transforma quando tem certeza que os outros não o estão, assim não podem ouvir seus pensamentos. - Leah o fulminou com o olhar, e foi retribuída com uma gentil advertência: – Se não contar para eles, serei obrigado a fazê-lo.

Todos vimos o rosto furioso de Leah tornar-se uma máscara de dor. Quase éramos capazes de ouvir sua súplica mental dizendo ao meu pai para não dizer o que quer que fosse.

- Não posso,- ele disse numa voz branda – você está correndo perigo com isso! – e virando-se para nós, esclareceu – Leah sofreu imprinting alguns anos atrás, mas ainda está confusa. Não queria que isso acontecesse – na verdade nem esperava acontecer! Não contou a ninguém e implorou que eu não o fizesse. Tentou fugir, mas todos sabemos que isto é forte demais para ser controlado – ele olhou para mim e Jacob ao dizer isto, e não pudemos deixar de ouvir o sonoro “humpft” de tia Rosalie, que ainda implicava com meu namorado – Leah só queria ser humana outra vez, mas estar perto da pessoa que ela... “ama”, a mantém loba para sempre.

A esta altura todos estávamos curiosos. Leah se mantinha imóvel no jardim, de olhos fechados, estremecendo ligeiramente quando meu pai mencionou a palavra “ama”. Edward esperou que ela se manifestasse, mas ela nada disse. Meu pai suspirou e riu:

- No fim, Alice tinha razão, como sempre: há algo em comum entre os lobos e os mestiços. Leah sofreu imprinting com Nahuel. O lobo que ele quase matou era ela.

Por alguns minutos, ninguém se lembrou de como fechar a boca: olhávamos de Leah para Nahuel aturdidos.

- Meu Deus, isso é melhor que novela mexicana! - Falou Emmet.

Pronto. Foi o suficiente para Leah explodir.

- Foi para isso que me chamou aqui, ó grande Alfa, para ser chacota de sua família? Pois saibam que eu prefiro morrer a ser bichinho de estimação de sanguessugas! – bradou, e depois saiu correndo.

- Alguém vá atrás dela, ela não está brincando! – disse meu pai. Porem, antes que Jacob e Seth se manifestassem, Nahuel interferiu e foi falar com ela. Esta parte da conversa nós só soubemos direito depois, pelas lembranças de Leah que Jacob captou; não havia segredo entre os lobos, muito menos entre Jake e eu.

Leah estava no penhasco – aquele mesmo de onde minha mãe se jogara – quando Nahuel a alcançou. Ela lutava contra os próprios sentimentos, mas ele foi categórico: não prometeu que a amaria, mas gostaria que fossem amigos, se isso a fizesse feliz. Ele ainda estava se acostumando com o mundo de possibilidades que o convívio com os Cullens oferecia, a chance de não ser um demônio e ter uma vida quase normal.

 - Não cabe a nós obrigar o nosso...afeto, a nos amar – disse Leah – mas acho que ficarei melhor depois disso.

­- Por favor entenda, não é uma rejeição; eu apenas não me conheço o suficiente para permitir que você arrisque sua vida e seus planos ao meu lado! Meu veneno é letal em você!

Leah sorriu, com um pouco de desdém, mas assentiu. Imediatamente seu coração se acalmou e nascia ali uma estranha amizade. Os planos dela não destoavam muito dos dele: estudar, trabalhar, ajudar a própria tribo, encontrar seu lugar no mundo. Ela era feliz como melhor amiga dele, ajudando-o sempre que possível, e isso era visível principalmente no tratamento dela conosco, mais tolerante – mas ainda mantinha a língua afiada! Até que um dia Nahuel pediu permissão para levá-la oficialmente para o sul, para sua floresta.

- Continuará sendo loba para sempre, quer realmente isso? – zombou Jacob

Isso aconteceu a poucos anos. E agora estávamos lá, todos juntos o casal mais inusitado do mundo. Olhar para Leah ali, radiante tal qual uma supernova, comparada com a loba desamparada que fora outrora, renovava em nós a esperança pelo direito à felicidade de cada um. “Não sabemos porque sofremos imprinting...”, dizia o vovô Black, "...mas a natureza sabe o que faz!"


Agora Leah e eu carregamos o peso de sermos progenitoras de uma nova geração daquela tribo. Se nascerão vampiros ou lobos, frios ou quentes, não importa: serão muito amados. Mas por enquanto isto não é algo em que pensamos. O tempo para nós arrasta-se e contá-lo chega a ser irracional. Queremos abraçar todas as possibilidades que nossa imortalidade permite. Assim, a nova geração dos filhos da Lua Cheia terá muito tempo para esperar...!


terça-feira, 25 de agosto de 2015

O ùltimo suspiro





H
oje eu acordei e não te vi. Estava tão apressada para resolver os meus problemas, as questões do meu dia-a-dia, que não te vi. Você dormia gostoso em minha cama, enrolado em meus lençóis e meu edredom, com seus cachos espalhados em meu travesseiro, respirando devagar o doce aroma da manhã. Eu não quis te acordar. Passava correndo pelo quarto, preocupada se, como sempre, não iria chegar atrasada. Eu lhe beijei rapidamente, manchando suas grossas sobrancelhas com o meu batom. E você sorriu. Só agora me dou conta daquele sorriso, doce e maroto... Não sei se foi uma reação involuntária, se você realmente me sentiu, enfim, talvez eu nunca vá saber. Mas será este sorriso a última lembrança sua que carregarei comigo, enquanto sinto minha alma esvair-se do meu corpo. Vou tentar não me culpar por não ter te acordado, não ter ouvido sua voz mais uma vez, não ter olhado diretamente para seus olhos cinza furta-cor e não ter dito mais vezes que eu te amo, mesmo já me culpando!!


Agora, presa nas engrenagens de um carro em chamas, vou pensar somente naquele seu sorriso que eu mal vi, investindo na certeza de que era para mim que você sorria e que era comigo que sonhava: eu, que agora me torno sonho, que agora me torno uma lembrança...!



sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Os rumos do meu coração

Ah... as paixões avassaladoras da adolescência, que fazem tudo parecer o fim do mundo!
Quem não teve um conflito amoroso na juventude, que atire a primeira pedra!


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S
eguir os caminhos do vento é fácil, é um só. Ele avança sobre as barreiras, faz suas curvas, diminui ou aumenta a velocidade, rodopia... Mas está sempre em uma direção. Porém como seguir o rio, com seus dois, três, dez ou até mil afluentes? E quando seu coração resolve imitar o rio, nos dividindo em difíceis decisões? Foi o que aconteceu comigo alguns anos atrás, quando eu tinha a mesma idade que você.

Guiga e Nando foram dois garotos que conheci quando criança e eram super legais. O Nando bonzinho e o Guiga companheiro. Não eram parentes, pareciam não fazer idéia da existência um do outro em minha vida, já que os conheci em lugares distintos. O Nando foi na escola, loirinho, de olhos claros e sorridentes. Fazíamos tudo juntos em classe, a começar por dividir a mesma mesa: discutíamos, brincávamos, colávamos – às vezes! Na hora do recreio ia cada um para o seu lado, mas em sala de aula, dedicávamos o tempo um com o outro. Eu sempre fui aluna de dez, ele era – ou é – aluno de dez e juntos éramos alunos de cem. As outras crianças sempre vinham com aquela brincadeira de que éramos namorados, mas apesar das gozações nos considerávamos ótimos amigos (aliás, ele era o único amigo verdadeiro que eu possuía naquela escola detestável!). Já o Guiga eu conheci porque ele morava perto da casa onde a minha mãe trabalhava. Era em uma rua larga e sem saída, mas que tinham poucas crianças. Certa vez ela não tinha com quem me deixar, então me levou para lá; enquanto eu estava sentada na varanda sem nada para fazer o Guiga me chamou para brincar. Ele era moreno, com cabelos pretos encaracolados e olhos castanho-escuros. Era considerado o “ovelha negra” da família, por seus gostos serem completamente diferentes do dos seus pais, mas ele jurava que não era questão de rebeldia; apenas queria ampliar os próprios horizontes.

Apesar de fisicamente diferentes, o que o Nando e o Guiga tinham em comum era a beleza: eles eram lindos, lindíssimos!! O Nando tinha um jeito angelical e dedicado, além de ter uma imaginação maior que o mundo: quantas vezes estivemos em perigo em plena floresta amazônica, fugindo de jacarés e onças enquanto a professora ministrava uma aula de ciências? E quantas vezes fui á Marte e descobri que os homens verdes eram menos inteligentes do que nós? Esse era o Nando... Já o Guiga, o que tinha de “rebelde” tinha de engraçado: conseguia arrancar um sorriso da pessoa mais carrancuda que houvesse no mundo – e isso sem ser pejorativo! Era o jeito dele, sua natureza: ser divertido. Eu adorava os dois, meu mundo era muito bem dividido com eles na minha vida, Nando na escola e o Guiga algumas tardes. Com eles aprendi um bocado de coisas: Nando, a tabuada de cor; Guiga, a andar de bicicleta. O Nando me auxiliou quando tive dificuldades em uma matéria de prova; já o Guiga me incentivou a provar que meninas sabiam jogar bola – sou um desastre até hoje!! Desistiu e me ensinou a jogar totó...

Nando na escola, e Guiga nas brincadeiras. E assim crescemos. Eu não percebi que já éramos adolescentes, expostos à toda complexidade hormonal que esta época nos impõe; na verdade eu era uma menina tranquila – não ingênua, mas sem maldades mesmo. Passava boa parte da minha vida convivendo com dois garotos e nunca notei que eles poderiam ser meus primeiros amores. Mas eles sim. E numa tarde em que eu rolei de bicicleta morro abaixo com um Guiga desesperado atrás de mim e eu morrendo de rir, ele me olhou nos olhos aparentemente muito zangado e disse: “Nunca mais faça isso!”. E me beijou. As gargalhadas cessaram na hora e uma garota muito assustada tomou posse de mim. Ele se afastou e eu - que estava de olhos abertos o tempo inteiro! - não consegui dizer absolutamente nada. Quando ele fez menção de se aproximar de novo eu o afastei, peguei minha bicicleta e com o joelho sangrando fui em direção á casa onde minha mãe trabalhava. Como eu não briguei, ele me acompanhou em silencio até a casa, mas quando eu fiz menção de entrar sem lhe dizer nada ele gritou: “Desculpa! Eu estava assustado! E eu gosto de você!!”. Nem preciso dizer que eu e um tomate éramos irmãos gêmeos...!

Quando eu entrei na casa, levei uma bronca por ter caído, no entanto o remédio passado para limpar o joelho nem ardeu: meu coração, que batia tão descompassadamente, me deixou anestesiada. Passado o choque, veio o sorriso de ponta a ponta: afinal o Guiga gostava de mim! Mas e eu, gostava dele? E o Nando: onde ele ficaria nesta história?

Pois é... foi neste instante que me dei conta da importância que os dois tinham na minha vida. Eu era amiga dos dois, mas este “algo mais” era totalmente novo. Passei a noite revivendo aquele beijo inocente, e no dia seguinte o sorriso de ponta a ponta ainda estava lá, estampado no meu rosto e me entregando para qualquer um que passasse.

Inclusive o Nando.

 - O que houve com você? Porque está assim hoje? – ele perguntou

Eu queria contar; afinal ele era o meu melhor amigo na escola, mas mordi os lábios, pois uma pontinha de insegurança veio na minha mente. Balancei a cabeça como quem diz “nada não” e continuei copiando a matéria. Durante toda a aula eu sentia seu olhar de tempos em tempos e achava engraçada a sua curiosidade – e em nenhum momento desconfiei o que ele poderia estar pensando, afinal, minha cabeça ainda estava no Guiga. Foi bem no finalzinho da aula, logo depois que o alarme de saída tocou, que ele se aproximou e revelou seus pensamentos:

- Você finalmente descobriu não é? – ele me perguntou com um ar zombeteiro e o mesmo sorriso de ponta a ponta que eu estava. Porque não reparei que aquele sorriso era igual ao meu? Ao invés disso respondi com um “O quê?” de quem não está entendendo nada e me perdi naqueles olhos cor de mar que se aproximaram como uma onda e se derramaram em minha boca. Outro beijo em menos de 24 horas. Mas não era do mesmo cara! Não houve olhos abertos, e apesar do susto não houve coração descompassado: minha mente já sabia o que era e meu corpo reagiu bem. Pude sentir melhor o beijo, apreciá-lo, e talvez isto tenha dado ao Nando a impressão de aceitação. “Eu gosto de você!”, ele sussurrou. Quando ele se afastou tinha o rosto mais iluminado do que quando tínhamos feito uma viagem fantástica ao centro da Terra junto com Júlio Verne! Passou a mão no meu rosto e com jeito de menino que não se importa disse “Preciso ir, mas a gente se fala amanhã!”. Eu ignorei completamente as duas meninas que não iam com a minha cara e me olhavam com aquele olhar de desprezo que só as adolescentes sabem fazer bem – pura inveja, preciso dizer! – enquanto pensava em tudo que tinha acontecido.

Dois garotos.

Dois beijos.

Uma menina.

A matemática não estava batendo. Ou estava?

Fui para casa, disse para minha mãe que estava doente e que não poderia ajudá-la naquele dia (se de início eu ia lá por não ter ninguém que tomasse conta de mim, já adolescente eu ia ao trabalho dela para adiantar alguns de seus serviços e ela poder sair mais cedo - além de brincar com o Guiga, de quem naquele momento estava fugindo propositalmente!). Também não fui á aula no dia seguinte, passei todo tempo pensando no que havia acontecido e no que eu deveria fazer. Gostava dos dois por igual. Talvez se o Nando não tivesse me beijado eu teria ficado com o Guiga, pois não haveria uma “outra” opção. Mas aquele “finalmente descobriu” que ele disse significava que seus sentimentos eram mais antigos, e eu mesma já não tinha certeza se não gostava dele desde antes também. Eu não poderia namorar os dois ao mesmo tempo - juro que pensei nisto, mas onde ficaria a minha cara quando um me descobrisse com o outro? Acho que eu sumiria... Estava dividida entre a beleza do dia e os mistérios da noite, entre o mar e as montanhas. Foi como se estivesse navegando por um rio calmo e seguro, que de repente tornara-se caudaloso e surgisse à minha frente dois caminhos, cada qual com a sua qualidade, cada qual com a sua justificativa para ser a escolha perfeita: um caminho de belas flores e o outro de animais raros. Porém escolher um era privar-me dos encantos do outro e de suas surpresas. Eu tinha que escolher, e rápido.

Quando retornei às aulas dois dias e um final de semana depois do beijo eu tinha uma decisão. Para ambos. Entrei em sala e o Nando me olhava preocupado: o pobrezinho passara aqueles dois dias sendo a chacota dos garotos por ter “perdido a namorada”, mas comportou-se como um cavalheiro. Eu soube disto pouco antes de chegar à classe e tive que repensar o meu discurso. Ao ver seu olhar aflito, gritei um “hei!” com um sorriso forçado e antes que qualquer um comentasse alguma coisa agarrei seu rosto e tasquei-lhe um beijo. O coro à nossa volta vibrou com o velho “Tá namorando, tá namorando!” e eu com a cara mais blasé possível rebati: “Nós estamos juntos há um tempão, porquê esta comoção agora?”, “Ah, porque agora é oficial!” gritou um dos meninos “Oficial? Agora? Vocês zoavam a gente desde sempre, eu estava crente que já sabiam...!” e assim cortei o clima. Mas precisava acertar as coisas. E foi no final da aula que eu lhe disse que não podia namorar com ele; me sentia muito nova e que só fizera aquilo de manhã porque soubera o que tinha acontecido enquanto estava fora. Eu o amava como a um amigo, um irmão e não queria que ele sofresse por minha causa.

- Você é uma escrota! E eu não preciso da sua piedade! – foi sua resposta. 

Saí da escola com um aperto no peito, magoadíssima com a sua atitude, pois de todas as reações esta era a única não esperada. Eu entendo que ninguém quer ouvir um “não vou namorar com você”, mas ofender uma pessoa a quem você dizia ser “amigo” é desnecessário! E o pior de tudo era que o dia ainda não havia acabado, ainda havia coisas a se resolver. O Guiga já estava lá na calçada quando cheguei no serviço da minha mãe, com seus grandes fones de ouvido que naquele momento não emitiam som algum, apenas justificavam seu caminhar de um lado para o outro. Um sorriso largo se abriu no seu rosto, enquanto um tímido saiu do meu. “Então, precisamos conversar!”, eu comecei. E lá se foi toda a ladainha de novo, de ser muito jovem, gostar dele como amigo, etc. etc.

- É o cara da sua escola não é? – ele perguntou – Aquele “Nando”... Desde que te conheço você fala dele...

Eu me vi surpresa: na verdade nunca me dera conta de que falava do Nando para o Guiga. Será que inconscientemente trazia o Nando para todos os meus momentos? Então me lembrei de como ele reagiu à minha decisão e concluí que não merecia alguém assim.

 - Não Gui, não é o cara da escola. É por minha causa mesmo...

Ele sorriu, e pelo menos com ele foi mais fácil – ou ele soube disfarçar muito bem! O Nando passou a semana me evitando, falando pouco e eu também estava sem jeito de lidar  com ele. Ele foi sensato em não querer mudar de lugar pois isso ia gerar mais incômodos para nós, com os colegas da classe questionando o que acontecera entre a gente.

 - E então, ele está feliz? – perguntou ele às vésperas do final de semana. Eu estava terminando a nota de um exercício, parei o lápis no ar e olhei para ele com aquela cara de “sobre o que você está falando?”- O Guilherme! Ou você achou que eu ia acreditar naquela historinha de que “você é novinha demais”?

Foi então que a minha ficha caiu, e eu compreendi o que estava se passando na cabeça dele. Eles eram tão presentes na minha vida que eu realmente falava de um para o outro sem perceber. Uma lágrima teimosa ficou querendo sair dos meus olhos, mas respirei fundo e a mantive no lugar.

- Você achou que eu tivesse dispensado você porque estava namorando o Guiga...  – falei enquanto fechava meu caderno e guardava minhas coisas - Sabe Nando, o Guiga é tão meu amigo quanto você, ou pelo menos quanto você era, porque eu sempre esperei que meus amigos me conhecessem bem, e você acaba de provar que não é o seu caso: a “historinha” que diz que eu criei é a minha realidade; você deveria saber! – e fui saindo da sala, mas ele pulou da carteira e me segurou!

- Espera! Desculpa eu... eu... achei que...

- Você simplesmente não acreditou em mim e achou que eu estava com o Guiga!!

- Desculpa... É que... Não é fácil receber um “não” como resposta...!

- E não é fácil ser ofendida sem motivo! Você me chamou de “escrota” Nando!...

- Ah eu sempre te chamei de “escrota”!

- Não com aquela conotação!

- Desculpa vai... Deixa eu ser seu amigo de novo!

- Você quem quis deixar de ser...!
         
         - Hummm, essa frase pode ser interpretada para duas situações!

E então nós rimos. Mas eu sabia que nada ia ser como antes.

No final daquele dia eu sentia um alívio e ao mesmo tempo um vazio. Alívio por ter resolvido esta questão sem machucar ninguém e vazio porque também sabia que a partir dali minha relação com meus únicos amigos iria mudar; sentia que ia perdê-los em breve. E perdi.  Não, não foi como acordar e não ter mais a amizade, mas aquele fato foi um divisor de águas em nossa relação. Com um tempo passei a assumir mais tarefas no serviço da minha mãe e já não tinha mais tempo livre para conversar com o Guiga, até que a família dele se mudou para outro estado: ele até me escreveu umas duas cartas, mas sabem como são os meninos e suas distrações, se não param para fazer os deveres da escola que dirá escrever uma carta para uma amiga distante que rejeitou o seu afeto. Já o Nando, foi um problema de ideais de futuro: eu queria trabalhar logo, e onde estudávamos não oferecia ensino profissionalizante; logo, precisei mudar de escola. Até trocamos de telefone, mas sabem como são os meninos e os telefones...

Saí da minha canoa e segui por terra, mas vez ou outra ainda posso sentir o perfume das flores ou ouvir o murmurar dos animais. Com o avanço das tecnologias, conversando com um ou outro colega pude saber deles, como estavam, mas nunca tentei um contato; já não éramos mais crianças, provavelmente mudamos bastante e eu preferi ficar com a recordação de como eles eram.

          Ah... mas como eu gostava do Nando...! E do Guiga também! 


domingo, 10 de maio de 2015

Resenha # 2 – O Refúgio Do Príncipe.

Autor: Eva Ibbotson


Às vezes vivemos algo tão intensamente que carregamos aquilo para sempre. Pode ser um relacionamento, uma amizade, pode ser um filme que assistimos, um livro que lemos... ou simplesmente um lugar. Um lugar como outro qualquer, mas que para nós foi plenamente mágico.

Eva Ibbotson viveu isso quando era criança e o lugar nada mais era que um colégio interno. Não um colégio cheio de regras como a maioria dos internatos, mas uma escola progressista. Ela amou tanto este colégio e tudo que viveu ali que ele se tornou quase o personagem principal deste livro. Quase, por que as personagens principais são tão encantadoras e maravilhosas quanto esta escola deveria ter sido para a autora.

“O refúgio do príncipe” fala sobre a amizade e princípios. Um a garotinha de família humilde vai para uma escola interna, pois seu pai teme que a segunda guerra a atinja, e nos campos ela estaria segura. Lá, misturada a outras crianças tão diferentes e especiais entre si, a menina aprende a ser livre. Mas tem mais: o livro também conta a história de um jovem principezinho de um país fictício, Karil, que vive preso às convenções da monarquia. Filho único e sem mãe, ele sofre por não ser uma criança normal. Até que em uma feira escolar internacional realizada em seu país ele conhece Tali, a menina citada acima, e com ela e seus amigos travam uma amizade surreal. Mas aí a guerra eclode; Alemanha faz da Inglaterra sua inimiga e todos os países que dizem não à Hitler ficam em perigo, e isto inclui o pequeno país de Karil. Mas as crianças não entendem de guerra; entendem de amizade – e esta amizade supera todas as diferenças sociais e nacionais que o mundo adulto geralmente decide impor.

É um livro infanto-juvenil sim, mas nos deixa lições de liberdade que vale a pena serem analisados. Liberdade essa expressada no antagonismo entre uma modelo vivo que resolve dar aulas e cozinhar no colégio onde Tali vai estudar e uma atriz que esconde a filha para manter o sucesso e a juventude. As diferenças sociais e de caráter também estão marcadas na conduta entre o pai e o tio de Tali: ambos são médicos, porém o primeiro resolveu exercer a medicina em benefício da salvação do próximo, lhe rendendo horas extras de trabalho e condições medianas para prover a família, enquanto o segundo cobra fortunas de suas consultas e com isso adquire um padrão melhor de vida.  A narrativa é delicada, porém não deixa de pesar as mágoas de Karil e Tali quando suas dores são expostas. Ambientado no período da Segunda Guerra Mundial, flashes de como o a sociedade inglesa se comportou na época e como as crianças receberam essas mudanças é outro ponto forte da história.

Mas é inegável que a escola faz sua grande participação no contexto da história. Tanto que a autora reservou uma nota esclarecedora sobre ela logo no início do livro:

A história de O refúgio do príncipe é uma aventura imaginária. Mas o Colégio Delderton baseia-se numa escola para onde me mandaram há muitos anos e que me surpreendeu logo que cheguei lá, assim como surpreendeu Tali.
Quando cheguei, era uma menininha um bocado tímida e bem-comportada, de um convento de Viena, onde nasci. A primeira coisa que fiz foi uma reverência diante do diretor, que me recebeu no pátio do colégio – o que muito fez rir a crianças que observavam, a ponto de uma delas cair de uma árvore.
Logo me dei conta, no entanto, de que aquela era uma escola diferente de todas as outras. Aulas espantosas de biologia – que às vezes começavam às quatro da manhã - , uma cozinheira que havia sido modelo de artista, a cabana dos animais de estimação com sua coleção de bichos esquisitos – tudo isso fez parte de minha vida no colégio. Como Tali, eu achava difícil ser “livre” e “progressista” – no entanto, cedo incorporei aquele lugar estranho com o mesmo apreço que tivera pelo lar que perdi quando fugi de Viena -, o que não quer dizer que não fomos afetados pela guerra. Do telhado plano do ginásio do colégio. Minhas amigas e eu vimos Plymouth, a cerca de quarenta quilômetros de distância, incendiar-se


Um livro adorável, para crianças e adultos.


Cama Vazia

E quanta dor caberá dentro de você?
E como fazer para ela ir embora?


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Envolta de travesseiros, enquanto comia um chocolate, estava ela, ainda de pijamas, à escrever. Partículas do chocolate misturavam-se aos farelos de pão e biscoito, aos respingos de chá, café, leite e aos lenços de papel espalhados pela cama. Com uma obsessão adolescente, ela escrevia. Tinha plena consciência do Sol brilhando lá fora, pois sua luz teimava em atravessar as frestas da janela; porém, queria permanecer para sempre ali, quieta, em sua semiescuridão, escrevendo sobre sua dor e seus sonhos interrompidos.

A cama era grande, mas estava vazia. Ela e os travesseiros não conseguiam preencher a saudade angustiosa e indefinível que sentia. Poderia deitar-se em qualquer posição, ser a dona daquele espaço, espalhar-se e alongar-se; no entanto, teimava em posicionar-se à esquerda, como se esperasse que a vaga fosse milagrosamente preenchida.

Por várias vezes ela acreditou que seria; em todas elas se enganou. Eles partiram, levando consigo os sonhos que ela lhes impunha. Ao invés de amenizar-se, a dor da despedida fazia-se mais mortal a cada nova vez que ocorria. Porque precisava depender de outro ser para realizar seus desejos, queixava-se. Porque não poderia fazer sozinha, como tudo que conquistara na vida? No fundo ela sabia a resposta: o fardo era pesado demais. Natureza cruel.

Quando ela terminou de escrever e seu coração já se encontrava apaziguado, era tarde, a manhã há muito havia avançado. Ela queria que estivesse chovendo, que lá fora um vento frio e deprimente rodopiasse pelas casas, como reflexo de sua alma entristecida. Mas o Sol teimava em brilhar e penetrar insinuante pelas frestas. “Como o amor”, pensou.


E no fim, estava decidida: iria tentar outra vez.


sexta-feira, 1 de maio de 2015

A nuvem que chovia histórias

N
o cume de uma montanha, a mais alta do mundo, vivia um homem tão velho quanto a própria humanidade e tão só quanto a própria solidão. Infeliz? Não, ele não se considerava assim, pelo contrário: sentia-se o homem mais feliz de todos, longe da maldade que dominava os homens, vivendo de sua horta e cultivando seu imenso jardim, onde possuía um exemplar de cada flor existente, trazida pelos seus melhores amigos, os pássaros, que também lhe informavam como ia o mundo além da montanha. Como considerá-lo um homem só, se contando com as plantas e com os animais ele possuía mais amigos que qualquer homem na face da Terra?

Este homem, tão logo acordava pela manhã, ocupava-se em cuidar de seu jardim, para que os pássaros viessem se alimentar do pólen de suas plantas. Enquanto o regava, tratava das plantas, revolvia a terra retirando ervas daninhas e contava histórias. Elas falavam de amor, de bondade, esperança e principalmente de Deus. Ah, como eram belas as histórias que ele contava sobre o povo e Deus e daqueles que Ele enviou para ensinar aos homens sobre o amor... Certamente ouvira as mesmas quando criança – ainda que não recordasse da própria infância! Ao anoitecer, com o crepúsculo resplandecendo no horizonte, chorava pelos homens, e antes de dormir, pedia a Deus que tivesse piedade deles.

A recompensa de tanta bondade e perseverança foi o surgimento de fadas em seu jardim. Como o desejo daquele homem era que houvesse paz no mundo, através delas este desejo era realizado. Os minúsculos serem oníricos ajudavam os homens de bem em suas realizações; sua intenção era mostrar à todos que as boas ações eram merecidamente recompensadas, pois permitiam a realização dos desejos mais íntimos de cada um.

Aconteceu que, numa manhã de inverno, época em que as plantas recolhem seus botões, uma roseira desobediente desabrochou, fazendo surgir uma linda rosa vermelha, e dentro dela, uma pequena fadinha. As outras fadas ficaram assombradas, pois nascimentos só são esperados na primavera, e não sabiam o que fazer com a pequenina. Frágil e ainda indefesa, ela não poderia acompanhá-las em suas missões pois viria a perecer; o mesmo aconteceria se permanecesse ali naquele frio. O que fariam então?

Por sorte o rubro da rosa em meio à neve chamou a atenção daquele velho homem, que foi verificar do que se tratava e ficou maravilhado com a rosa temporã. Achou-a mais que bela: um verdadeiro milagre dos céus de desafio e resistência, e resolveu levá-la para casa. Lá a colocou em um jarro de água e começou a cercá-la de cuidados. As outras fadas logo se alegraram, pois agora tinham a certeza de que sua irmãzinha ficaria bem.

Todos os invernos eram de solidão e muito trabalho para aquele homem: os pássaros, seus amigos, partiam em busca do verão, e as plantas que não resistiam ao frio exigiam um pouco mais de sua atenção para não perecerem. Passava todo o inverno rememorando histórias, colocando alguns pontos, reinventando-as ou simplesmente criando novas, para contar aos seus amigos quando estes voltassem. Mas naquele inverno ele não estava só, pois tinha sua rosa. E foi para ela que ele dedicou grande parte de sua atenção, contando-lhe histórias. Não sabia, porém, que dentro da rosa havia uma fada e esta se desenvolvia cada dia mais radiante pelas histórias que ele contava. 

E enfim chegou a primavera, e com ela novas flores no jardim, e principalmente mais fadas. O velho homem voltou alegremente ao seu ofício de cuidar de seus amigos e contar-lhe as histórias, como se a aventura invernal tivesse sido apenas mais uma delas. Logo, nenhum dos outros seres que habitavam aquele lugar estranhou quando o velho, um pouco pesaroso, levou a rosa, agora já com galhos, para seu jardim. Não podia deixá-la em casa pois não podia amá-la mais que às outras, então tratou de esquecê-la. Mas a fadinha que vivia dentro daquela rosa não o esqueceu, e esforçou-se mais que as outras para realizar o sonho dele.

Ah, quisera que os outros humanos fossem como aquele velho homem, que olhassem uns para os outros como ele olha para as flores em seu jardim: cada uma tem a sua beleza, mas são tratadas igualmente, não havendo mais belas, nem mais feias. O mesmo olhar que lança para as flores lança para as ervas: para aqueles olhos todas são iguais. Pudera também os seres humanos amassem tanto uns aos outros como ele os amava. Chorava à noite, pedindo à Deus que perdoasse aqueles que nada fazem para lutar por um mundo melhor. Às vezes pensava em voltar para o mundo além da montanha, em como gostaria de passar sua mensagem para eles, mas temia ser sufocado pela arrogância do povo; sentia que seria impossível. Só lhes restava rezar.

Foi pensando neste desejo que a fadinha teve uma ideia: fez um feitiço de maneira que cada história que o velho contava tornava-se vapor e ia se juntando lá no alto do céu, formando uma nuvem. Quando estava bem carregada, a nuvem se afastava e ia para as cidades. As pessoas logo se preparavam para um temporal, mas quando davam conta de si, sentiam sua imaginação fervilhar de histórias bonitas que logo eram contadas para outras pessoas, que contavam para outras, e contavam para outras... até que todos tinham conhecimento da história. E assim muitos mudavam o modo de ver o mundo – mesmo que outros não se importassem. E assim a nuvem seguia carregando e descarregando sempre...
Até que um dia, o velho partiu finalmente; já era chegada a sua hora. Deveria ser motivo de tristeza para os seres que ali habitavam mas foi de muita alegria pois todos sabiam que ele estava no céu, aos pés do Senhor. Somente a fadinha ficou triste: o que seria da sua nuvem de histórias? Era a única coisa que imortalizava aquele senhor que vivera tanto quanto qualquer mortal e permitiria que seu trabalho e suas orações tocassem os homens. Não haveriam mais histórias... Foi então que as outras fadas, percebendo seu pesar e conhecendo seus motivos tiveram uma ideia: transformariam toda boa história que saísse da boca dos humanos em nuvem para desabar em outros corações.

E assim aconteceu. Por muitos anos a nuvem carregava e descarregava milhares de histórias no coração dos homens, e mudavam suas atitudes, seu jeito de pensar. No entanto, é uma pena que a maldade dominava muitas mentes, impedindo-os de viver as maravilhas da nuvem que chovia histórias. Ela acabou tornando-se uma névoa, uma bruma, e são poucos os que a sentem e absorvem seu encanto, como eu.

Ah, como seria bom se todos pudessem ver, sentir, se envolver e trazer de volta a nuvem que chove histórias! Uma pena que o sonho do velho homem ainda esteja bem longe de se tornar realidade...! 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Meus 'Eu's

Segue uma linha filosófica de que tudo que temos aqui foi projetado por nós em outro plano. Todas as nossas conquistas e nossas derrotas são frutos da projeção dos nossos pensamentos. Outra linha diz que todas as possibilidades existem paralelamente e que o que fazemos, é apenas visualizar aquela que mais nos agrada. 
Quantos planos paralelos podem existir em um só dia?



Meu eu atravessou a rua depressa para não perder o metrô.
Meu outro eu despediu-se calmamente depois de uma gargalhada gostosa e muitas promessas de encontros em breve; ligou o ar do carro e deixou as janelas abertas para poder refrescar.

Meu eu sentou-se no banco risonha, meditando sobre tudo que aconteceu; o encontro fortuito, a conversa alegre, o contato inesperado... Enfim, reviveu naqueles minutos de viagem, entre uma estação e outra, o dia que se passou.
Meu outro eu ajeitou o próprio cinto de segurança. Olhou pelo retrovisor a criança que voltara a dormir depois de devidamente acomodada em sua cadeira. Como um olhar nunca basta, passou a mão em suas perninhas para sentir aquele calor que jamais era blasfemado. Engatou a marcha. Partiu para casa.

Meu eu estava atento às pessoas que saíam com ele junto ao metrô enquanto mirava o ponto de ônibus para mais uma baldeação; meu outro eu olhava atento os motoristas de final de semana.

No ônibus, a ligação preocupada da mãe, já na subida da ponte, vem com misto de bronca e preocupação: “Vai demorar muito?” “Depende do transito: estou na ponte. Acho que não. Como o pai está?”, “Ah, sabe como é: já está dormindo”. E daí palavras aceleradas, “‘tchau’s” confundidos com “‘te amo’s”, pois na ponte o sinal não funciona

No carro é o marido quem liga, neste caso sem a bronca, apenas a preocupação: “Vai demorar muito?” “Depende do transito: estou na ponte. Acho que não”,“Como ela está?”, “Ah, sabe como é: já está dormindo!”. Daí mais algumas declarações, “‘te amo’s” que não se confundem com “‘tchau’s”, promessa de companhia até em casa, mas na ponte o sinal ainda não funciona.

Finalmente em casa, a mãe já está dormindo; o marido, acordado. Ele retira a criança do carro e a coloca na cama; em outro plano, a eterna criança beija a fronte dos pais, tentando não acordá-los. Mas a mãe sempre está acordada. “Como foi lá?”, mãe e marido perguntam. “ Foi tudo bem, com a graça de Deus”, meus “eus” respondem.

A ducha morna; a banheira aquecida; ambos relaxam.
Logo vem a hora de dormir aninhado;
Logo vem a hora de sonhar acordado.

E assim o dia se encerra, nestes dois planos distintos. Intrínsecos? Paralelos? Algo que passou ou algo que virá? Algo que existe?

Quem sou eu? Qual é meu verdadeiro eu?

‘Eu’ Estou exatamente onde devo estar...!


(Imagem: os Pilares da Criação - NASA. Obs: Esta estrutura foi destruída à aproximadamente 6.000 anos. Mas daqui ainda conseguiremos observá-la por pelo menos mais mil anos...)