Ah... as paixões avassaladoras da adolescência, que fazem tudo parecer o fim do mundo!
Quem não teve um conflito amoroso na juventude, que atire a primeira pedra!
***************************************************************
eguir os caminhos do vento é fácil,
é um só. Ele avança sobre as barreiras, faz suas curvas, diminui ou aumenta a
velocidade, rodopia... Mas está sempre em uma direção. Porém como seguir o rio,
com seus dois, três, dez ou até mil afluentes? E quando seu coração resolve
imitar o rio, nos dividindo em difíceis decisões? Foi o que aconteceu comigo
alguns anos atrás, quando eu tinha a mesma idade que você.
Guiga e Nando
foram dois garotos que conheci quando criança e eram super legais. O Nando
bonzinho e o Guiga companheiro. Não eram parentes, pareciam não fazer idéia da
existência um do outro em minha vida, já que os conheci em lugares distintos. O
Nando foi na escola, loirinho, de olhos claros e sorridentes. Fazíamos tudo
juntos em classe, a começar por dividir a mesma mesa: discutíamos, brincávamos,
colávamos – às vezes! Na hora do recreio ia cada um para o seu lado, mas em sala
de aula, dedicávamos o tempo um com o outro. Eu sempre fui aluna de dez, ele
era – ou é – aluno de dez e juntos éramos alunos de cem. As outras crianças
sempre vinham com aquela brincadeira de que éramos namorados, mas apesar das
gozações nos considerávamos ótimos amigos (aliás, ele era o único amigo
verdadeiro que eu possuía naquela escola detestável!). Já o Guiga eu conheci
porque ele morava perto da casa onde a minha mãe trabalhava. Era em uma rua
larga e sem saída, mas que tinham poucas crianças. Certa vez ela não tinha com
quem me deixar, então me levou para lá; enquanto eu estava sentada na varanda
sem nada para fazer o Guiga me chamou para brincar. Ele era moreno, com cabelos
pretos encaracolados e olhos castanho-escuros. Era considerado o “ovelha negra”
da família, por seus gostos serem completamente diferentes do dos seus pais,
mas ele jurava que não era questão de rebeldia; apenas queria ampliar os
próprios horizontes.
Apesar de
fisicamente diferentes, o que o Nando e o Guiga tinham em comum era a beleza:
eles eram lindos, lindíssimos!! O Nando tinha um jeito angelical e dedicado,
além de ter uma imaginação maior que o mundo: quantas vezes estivemos em perigo
em plena floresta amazônica, fugindo de jacarés e onças enquanto a professora
ministrava uma aula de ciências? E quantas vezes fui á Marte e descobri que os
homens verdes eram menos inteligentes do que nós? Esse era o Nando... Já o
Guiga, o que tinha de “rebelde” tinha de engraçado: conseguia arrancar um
sorriso da pessoa mais carrancuda que houvesse no mundo – e isso sem ser
pejorativo! Era o jeito dele, sua natureza: ser divertido. Eu adorava os dois,
meu mundo era muito bem dividido com eles na minha vida, Nando na escola e o
Guiga algumas tardes. Com eles aprendi um bocado de coisas: Nando, a tabuada de
cor; Guiga, a andar de bicicleta. O Nando me auxiliou quando tive dificuldades
em uma matéria de prova; já o Guiga me incentivou a provar que meninas sabiam
jogar bola – sou um desastre até hoje!! Desistiu e me ensinou a jogar totó...
Nando na escola,
e Guiga nas brincadeiras. E assim crescemos. Eu não percebi que já éramos
adolescentes, expostos à toda complexidade hormonal que esta época nos impõe;
na verdade eu era uma menina tranquila – não ingênua, mas sem maldades mesmo.
Passava boa parte da minha vida convivendo com dois garotos e nunca notei que
eles poderiam ser meus primeiros amores. Mas eles sim. E numa tarde em que eu
rolei de bicicleta morro abaixo com um Guiga desesperado atrás de mim e eu
morrendo de rir, ele me olhou nos olhos aparentemente muito zangado e disse:
“Nunca mais faça isso!”. E me beijou. As gargalhadas cessaram na hora e uma
garota muito assustada tomou posse de mim. Ele se afastou e eu - que estava de
olhos abertos o tempo inteiro! - não consegui dizer absolutamente nada. Quando
ele fez menção de se aproximar de novo eu o afastei, peguei minha bicicleta e
com o joelho sangrando fui em direção á casa onde minha mãe trabalhava. Como eu
não briguei, ele me acompanhou em silencio até a casa, mas quando eu fiz menção
de entrar sem lhe dizer nada ele gritou: “Desculpa! Eu estava assustado! E eu
gosto de você!!”. Nem preciso dizer que eu e um tomate éramos irmãos gêmeos...!
Quando eu entrei
na casa, levei uma bronca por ter caído, no entanto o remédio passado para
limpar o joelho nem ardeu: meu coração, que batia tão descompassadamente, me
deixou anestesiada. Passado o choque, veio o sorriso de ponta a ponta: afinal o
Guiga gostava de mim! Mas e eu, gostava dele? E o Nando: onde ele ficaria nesta
história?
Pois é... foi
neste instante que me dei conta da importância que os dois tinham na minha
vida. Eu era amiga dos dois, mas este “algo mais” era totalmente novo. Passei a
noite revivendo aquele beijo inocente, e no dia seguinte o sorriso de ponta a
ponta ainda estava lá, estampado no meu rosto e me entregando para qualquer um
que passasse.
Inclusive o
Nando.
- O que houve com você? Porque está assim
hoje? – ele perguntou
Eu queria contar;
afinal ele era o meu melhor amigo na escola, mas mordi os lábios, pois uma
pontinha de insegurança veio na minha mente. Balancei a cabeça como quem diz
“nada não” e continuei copiando a matéria. Durante toda a aula eu sentia seu
olhar de tempos em tempos e achava engraçada a sua curiosidade – e em nenhum
momento desconfiei o que ele poderia estar pensando, afinal, minha cabeça ainda
estava no Guiga. Foi bem no finalzinho da aula, logo depois que o alarme de
saída tocou, que ele se aproximou e revelou seus pensamentos:
- Você finalmente
descobriu não é? – ele me perguntou com um ar zombeteiro e o mesmo sorriso de
ponta a ponta que eu estava. Porque não reparei que aquele sorriso era igual ao
meu? Ao invés disso respondi com um “O quê?” de quem não está entendendo nada e
me perdi naqueles olhos cor de mar que se aproximaram como uma onda e se derramaram
em minha boca. Outro beijo em menos de 24 horas. Mas não era do mesmo cara! Não
houve olhos abertos, e apesar do susto não houve coração descompassado: minha
mente já sabia o que era e meu corpo reagiu bem. Pude sentir melhor o beijo,
apreciá-lo, e talvez isto tenha dado ao Nando a impressão de aceitação. “Eu
gosto de você!”, ele sussurrou. Quando ele se afastou tinha o rosto mais
iluminado do que quando tínhamos feito uma viagem fantástica ao centro da Terra
junto com Júlio Verne! Passou a mão no meu rosto e com jeito de menino que não
se importa disse “Preciso ir, mas a gente se fala amanhã!”. Eu ignorei
completamente as duas meninas que não iam com a minha cara e me olhavam com
aquele olhar de desprezo que só as adolescentes sabem fazer bem – pura inveja,
preciso dizer! – enquanto pensava em tudo que tinha acontecido.
Dois garotos.
Dois beijos.
Uma menina.
A matemática não
estava batendo. Ou estava?
Fui para casa,
disse para minha mãe que estava doente e que não poderia ajudá-la naquele dia
(se de início eu ia lá por não ter ninguém que tomasse conta de mim, já
adolescente eu ia ao trabalho dela para adiantar alguns de seus serviços e ela
poder sair mais cedo - além de brincar com o Guiga, de quem naquele momento
estava fugindo propositalmente!). Também não fui á aula no dia seguinte, passei
todo tempo pensando no que havia acontecido e no que eu deveria fazer. Gostava
dos dois por igual. Talvez se o Nando não tivesse me beijado eu teria ficado
com o Guiga, pois não haveria uma “outra” opção. Mas aquele “finalmente
descobriu” que ele disse significava que seus sentimentos eram mais antigos, e
eu mesma já não tinha certeza se não gostava dele desde antes também. Eu não
poderia namorar os dois ao mesmo tempo - juro que pensei nisto, mas onde
ficaria a minha cara quando um me descobrisse com o outro? Acho que eu
sumiria... Estava dividida entre a beleza do dia e os mistérios da noite, entre
o mar e as montanhas. Foi como se estivesse navegando por um rio calmo e
seguro, que de repente tornara-se caudaloso e surgisse à minha frente dois
caminhos, cada qual com a sua qualidade, cada qual com a sua justificativa para
ser a escolha perfeita: um caminho de belas flores e o outro de animais raros.
Porém escolher um era privar-me dos encantos do outro e de suas surpresas. Eu
tinha que escolher, e rápido.
Quando retornei
às aulas dois dias e um final de semana depois do beijo eu tinha uma decisão.
Para ambos. Entrei em sala e o Nando me olhava preocupado: o pobrezinho passara
aqueles dois dias sendo a chacota dos garotos por ter “perdido a namorada”, mas
comportou-se como um cavalheiro. Eu soube disto pouco antes de chegar à classe
e tive que repensar o meu discurso. Ao ver seu olhar aflito, gritei um “hei!”
com um sorriso forçado e antes que qualquer um comentasse alguma coisa agarrei
seu rosto e tasquei-lhe um beijo. O coro à nossa volta vibrou com o velho “Tá
namorando, tá namorando!” e eu com a cara mais blasé possível rebati: “Nós
estamos juntos há um tempão, porquê esta comoção agora?”, “Ah, porque agora é
oficial!” gritou um dos meninos “Oficial? Agora? Vocês zoavam a gente desde
sempre, eu estava crente que já sabiam...!” e assim cortei o clima. Mas
precisava acertar as coisas. E foi no final da aula que eu lhe disse que não
podia namorar com ele; me sentia muito nova e que só fizera aquilo de manhã
porque soubera o que tinha acontecido enquanto estava fora. Eu o amava como a
um amigo, um irmão e não queria que ele sofresse por minha causa.
- Você é uma
escrota! E eu não preciso da sua piedade! – foi sua resposta.
Saí da escola com
um aperto no peito, magoadíssima com a sua atitude, pois de todas as reações
esta era a única não esperada. Eu entendo que ninguém quer ouvir um “não vou
namorar com você”, mas ofender uma pessoa a quem você dizia ser “amigo” é desnecessário!
E o pior de tudo era que o dia ainda não havia acabado, ainda havia coisas a se
resolver. O Guiga já estava lá na calçada quando cheguei no serviço da minha
mãe, com seus grandes fones de ouvido que naquele momento não emitiam som
algum, apenas justificavam seu caminhar de um lado para o outro. Um sorriso
largo se abriu no seu rosto, enquanto um tímido saiu do meu. “Então, precisamos
conversar!”, eu comecei. E lá se foi toda a ladainha de novo, de ser muito
jovem, gostar dele como amigo, etc. etc.
- É o cara da sua
escola não é? – ele perguntou – Aquele “Nando”... Desde que te conheço você
fala dele...
Eu me vi
surpresa: na verdade nunca me dera conta de que falava do Nando para o Guiga.
Será que inconscientemente trazia o Nando para todos os meus momentos? Então me
lembrei de como ele reagiu à minha decisão e concluí que não merecia alguém
assim.
- Não Gui, não é o cara da escola. É por minha
causa mesmo...
Ele sorriu, e
pelo menos com ele foi mais fácil – ou ele soube disfarçar muito bem! O Nando
passou a semana me evitando, falando pouco e eu também estava sem jeito de
lidar com ele. Ele foi sensato em não
querer mudar de lugar pois isso ia gerar mais incômodos para nós, com os
colegas da classe questionando o que acontecera entre a gente.
- E então, ele está feliz? – perguntou ele às
vésperas do final de semana. Eu estava terminando a nota de um exercício, parei
o lápis no ar e olhei para ele com aquela cara de “sobre o que você está
falando?”- O Guilherme! Ou você achou que eu ia acreditar naquela historinha de
que “você é novinha demais”?
Foi então que a
minha ficha caiu, e eu compreendi o que estava se passando na cabeça dele. Eles
eram tão presentes na minha vida que eu realmente falava de um para o outro sem
perceber. Uma lágrima teimosa ficou querendo sair dos meus olhos, mas respirei
fundo e a mantive no lugar.
- Você achou que
eu tivesse dispensado você porque estava namorando o Guiga... – falei enquanto fechava meu caderno e
guardava minhas coisas - Sabe Nando, o Guiga é tão meu amigo quanto você, ou
pelo menos quanto você era, porque eu sempre esperei que meus amigos me
conhecessem bem, e você acaba de provar que não é o seu caso: a “historinha”
que diz que eu criei é a minha realidade; você deveria saber! – e fui saindo da
sala, mas ele pulou da carteira e me segurou!
- Espera!
Desculpa eu... eu... achei que...
- Você
simplesmente não acreditou em mim e achou que eu estava com o Guiga!!
- Desculpa... É
que... Não é fácil receber um “não” como resposta...!
- E não é fácil
ser ofendida sem motivo! Você me chamou de “escrota” Nando!...
- Ah eu sempre te
chamei de “escrota”!
- Não com aquela
conotação!
- Desculpa vai...
Deixa eu ser seu amigo de novo!
- Você quem quis
deixar de ser...!
-
Hummm, essa frase pode ser interpretada para duas situações!
E então nós rimos. Mas eu sabia que nada ia ser como antes.
No final daquele
dia eu sentia um alívio e ao mesmo tempo um vazio. Alívio por ter resolvido
esta questão sem machucar ninguém e vazio porque também sabia que a partir dali
minha relação com meus únicos amigos iria mudar; sentia que ia perdê-los em
breve. E perdi. Não, não foi como
acordar e não ter mais a amizade, mas aquele fato foi um divisor de águas em
nossa relação. Com um tempo passei a assumir mais tarefas no serviço da minha
mãe e já não tinha mais tempo livre para conversar com o Guiga, até que a
família dele se mudou para outro estado: ele até me escreveu umas duas cartas,
mas sabem como são os meninos e suas distrações, se não param para fazer os
deveres da escola que dirá escrever uma carta para uma amiga distante que
rejeitou o seu afeto. Já o Nando, foi um problema de ideais de futuro: eu
queria trabalhar logo, e onde estudávamos não oferecia ensino
profissionalizante; logo, precisei mudar de escola. Até trocamos de telefone,
mas sabem como são os meninos e os telefones...
Saí da minha
canoa e segui por terra, mas vez ou outra ainda posso sentir o perfume das
flores ou ouvir o murmurar dos animais. Com o avanço das tecnologias,
conversando com um ou outro colega pude saber deles, como estavam, mas nunca
tentei um contato; já não éramos mais crianças, provavelmente mudamos bastante
e eu preferi ficar com a recordação de como eles eram.
Ah... mas como eu gostava do
Nando...! E do Guiga também!