sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A Namorada Dela

Parte V – De menino, De menina...


Aquele verão não foi o mesmo sem a presença de Memê. Ela foi embora, morar com o pai. Eu fui colocada de castigo por ter saído de casa, e meu pai não permitiu que eu voltasse a praticar futebol. Mas entre ficar trancada e ao menos ver os meninos jogarem, a segunda tortura era mais suportável.

E em uma tarde, daquelas bem quentes de janeiro, Binho aproximou-se, estranhamente acanhado, enquanto eu fingia ler para ver jogo dos meninos. Ele queria saber como eu estava, se voltaria a jogar, enfim... Eu simplesmente não sabia o que lhe responder, uma vez que depois do que acontecera com Memê, o muro que separa as coisas de meninos das coisas de meninas foi reerguido com alicerces de aço.

– Os jogos nunca serão os mesmos sem a Memê – disse ele, depois de um certo silencio – Acho que você supera a falta dela. Eu sinto muito que as coisas tenham terminado assim entre vocês.

Fiz aquela cara de “Do que você está falando?”

– Você e a Memê... Não sabia daquela outra garota...
– Você achou que eu fosse apaixonada pela Memê? – perguntei. E a cara dele de quem já não tinha tanta certeza das coisas foi tão hilária que me fez rir.
– Todo mundo no condomínio pensava que vocês tinham alguma coisa.
– Imagino... É incrível a quantidade de coisas que fazemos segundo a cabeça dos outros!

Naquele instante me dei conta de que havia crescido. Como eu percebi isto? Bem, o fato de sequer me importar que o condomínio inteiro falasse de mim pelas costas foi uma grande prova. Em outros tempos eu teria ficado neurótica, querendo saber de todos os pontos e vírgulas do assunto e traçando meios de reverter a opinião a meu favor. Mas eu vi como é viver de acordo com o olhar dos outros e como essa opinião generalizada pode destruir alguém. E se minha vida era mais interessante que a deles a tal ponto, que ficassem com suas fofocas.

– E então?
– Então o que Binho?
– Você era ou não a namorada dela?
– É isso que está te afligindo? Que diferença fará se eu tiver sido ou não? As pessoas não já determinaram isto?
– Ia fazer pra mim... – respondeu ele baixinho. 

E de repente aquela conversa seguiu para um rumo que não tinha nada a ver com a Memê. Tinha a ver com o fato de eu também ser uma garota, que mandava muito bem na bola, modéstia à parte, e que tinha uma relação bacana com muitos garotos que também gostavam de jogar futebol. E um deles, o que arrastava o coração de metade das garotas do condomínio, estava na minha frente se remoendo para saber se eu havia ou não namorado uma menina.  

– Porque saber é importante para você, Binho?  - perguntei, numa voz tão sussurrada quanto a dele.

Ele não respondeu, mas no fundo eu sabia.

– Eu nunca fui “a namorada dela”, mas ela sempre será uma referência para mim, e toda vez que eu vir alguém sendo julgado injustamente por ser quem é, vou lembrar como agiram errado, como tentaram quebrar sua autoestima. Sinceramente, eu não quero jogar mais bola, pelo menos não aqui no condomínio nem na escola porque não quero estar com pessoas que deixam sua opinião ser baseada nas calúnias que outros dizem. Memê é uma garota apaixonante e admirável, e quer saber? Deve ser maravilhoso ser a namorada dela...

Semanas depois recebi um postal de Minas Gerais. Não entendi direito até ver que na assinatura tinha um “MM”. Bati no apartamento de D. Dora, com o postal na mão e lágrimas nos olhos.

– Ela está feliz Brisa. Vai ficar bem com o pai! Ele nunca foi bom de brincar de casinha, ela também não, então vão se entender...!
            
Desde então, por anos tenho recebido postais de diversas partes do mundo, sem endereço. E confesso que a expectativa de recebê-los norteia a minha vida, já que apesar de todas as conquistas, nunca pensei em me mudar. A mudança mais importante fora por dentro, naqueles anos em que aquela menina-moleque me ensinou sobre liderança, motivação e amizade verdadeira. Que meninas também podiam arrasar no futebol e fazer qualquer coisa que quisessem, desde que tivessem dedicação.
***
– Brisa corre aqui! – chamou o Binho, da sala de conferência onde estavam reunidos os alunos de sua escolinha de futebol, interrompendo os pensamentos dela. A primeira partida da Copa feminina iria começar, e ele e a parceira queriam que a turma observasse criticamente como jogavam as equipes estrangeiras. – Veja quem está com a camisa 10.

Brisa olhou o monitor e seus olhos marejaram.
Lá estava sua amiga Memê.
Ela conseguiu ser quem ela queria.


sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A Namorada Dela

Parte IV - Casinha

       Massacraram a Memê. Durante dias, fosse em casa, na escola ou na rua, todo mundo parecia estar unido para ofendê-la das piores formas possíveis e justificar os empurrões e puxões de cabelo por ela recebidos. Homens barbados diziam que lhe fariam coisas para que ela aprendesse a ser mulher. Tudo porque a viram beijando outra garota e a notícia correu como rastilho de pólvora. A namorada dela foi convidada a sair da escola, era maior de idade. Segundo a diretoria, seria uma má influência para as outras meninas – claro, os rapazes que agarravam as garotas na saída dos banheiros não eram más influências, muito menos os casais que se esfregavam pelos cantos da escola. Muitos daqueles que jogaram com ela, que a conheciam, viraram-lhe as costas, ou se uniram ao coro de ofensores. Poucos se absteram. E Memê aguentou tudo sozinha, em um silêncio e uma apatia impressionantes.

       – Parem com isso seus abutres! – gritei certa tarde, durante o intervalo, quando alguém a derrubou. Enquanto ela catava as folhas que se espalharam, uma turba uniu-se para ofendê-la. – Não acham que já chega? – continuei – Não implicaram o bastante? Quem são vocês para julgá-la? Tem caras aqui que fazem pior com as meninas e pagam de garanhões! E vocês do time de futebol, estão querendo descontar os banhos que ela deu em vocês nos jogos? É isso: uma vingança porque uma menina é melhor do que vocês, e porque ela tem coragem de ser quem é?
       – Ah olha só, a outra namorada está defendendo!! – gritou alguém.
       
      E antes que eu pudesse responder Memê interveio...
      ...Contra mim!

       – Saia daqui Brisa.
       – O que?
       – Eu disse SAIA DAQUI!
       – M-mas... Eu estou defendendo você!
       – E EU NÃO PRECISO QUE VOCÊ ME DEFENDA!!

       Virou as costas e saiu. Eu fiquei lá, parada, com a escola inteira rindo de mim, mas como eu não era interessante, eles se dispersaram. Pensei em seguir a Memê e lhe dizer umas poucas e boas, mas o Binho me segurou e me tirou dali.
     Passei o segundo tempo remoendo a humilhação sofrida por causa daquela garota ingrata. Naquele mesmo dia meus socos se espalharam pelos corredores do condomínio, dirigidos para a porta do apartamento de Memê. E meus palavrões também!

       – MELISSA !! Sua @#$%! Eu sei que você está aí, abre logo a &¨%$* desta porta sua vagabunda de quinta categoria! EU QUERO FALAR COM VOCÊ AGORA!!

       Memê abriu a porta com o rosto tão furioso que eu engoli os desaforos que saíam da minha boca. Ela me segurou nos ombros com força perguntando o que eu queria com aquele escândalo todo.

      – Eu estava te defendendo pô! Precisava ser grosseira comigo? Eu sou sua amiga... – falei, a última frase num fio de voz
        – Eu sei Brisa...
        – Então porquê...?
       – Porque EU suporto isso Brisa, EU sempre suportei. Eu sempre fui a diferente, não viu? Então, eu consigo superar isso sozinha. Mas você não, – e tão logo me viu com cara de espanto disparou – Ou você acha que dá conta de todos os insultos que me dizem todos os dias, vindo de pessoas que sequer me conhecem? Você, a menina que chorou quando as coleguinhas a rejeitaram porque não tinha uma Barbie?

       Eu abri a boca para falar, mas no fundo ela tinha razão: eu não tinha metade do suporte emocional que Memê possuía – me senti super mal naqueles dias em que também fui vítima de comentários da escola, chorando escondida no banheiro e evitando a todo custo cruzar com as garotas do condomínio e seus dedos acusadores. E apesar de todo perrengue que estava passando, Memê ainda encontrava tempo para zelar por mim.

         – Desculpa pegar pesado, Bri, mas você me entende, não é?
         Fiz que sim com a cabeça.
       – Beleza parceira! Agora vai pra casa. Seu pai proibiu a gente de se ver e eu não quero mais problemas para D. Dora.
       – Mas e você? A Keila saiu da escola...
      – Eu soube... – Memê olhava para o nada, apertando os lábios para segurar a emoção. Seus olhos brilhavam e eu via que ela sofria. Mas como era dura aquela menina!
       – A gente vai dar um jeito de ficar junto – disse por fim.

       Jeito? Como assim? Só se fosse fugindo!

      Dito e feito, Memê fugiu na calada da noite. Eu estava de tocaia e então a segui, mas sempre fui péssima em perseguições e ela logo me descobriu. Depois da bronca e de provar por “a mais b” que eu não conseguiria voltar sozinha, deixou-me acompanhá-la. Iria encontrar a Keila em algum ponto da linha do trem. Seria romântico se não fosse trágico: naquela época nenhum lugar as aceitaria, estariam sempre a margem da sociedade – uma sociedade mesquinha, cruel e hipócrita.
       Alguém sacudiu um pano branco assim que fizemos a curva. Ela correu naquela direção e eu fui atrás, trotando de sono. Quando as alcancei trocavam carícias através da cerca de tela. Ao me ver, Keila se afastou, irritada.

       – O que ela faz aqui?
       – Ela me seguiu, não podia deixá-la ir embora e se perder.
       – Ah vem com essa! – bradou Keila, afastando-se mais ainda da grade.
       – É verdade!! Brisa conta pra ela!
    – Eu não tenho nada com a Memê. Somos vizinhas, ela é minha amiga e eu estava preocupada...

      Mesmo hesitante, a Keila aceitou. Só então me dei conta que aqueles boatos antes do flagra prejudicaram mais o seu relacionamento do que a mim. Memê me deu um abraço e em seguida começou a escalar as grades. Foi quando um alarme tocou.

       – Brisa, se esconde! – ordenou. Mas começamos a ouvir vozes e luzes vindas de algum lugar da linha do trem.
       – Eu não posso ser pega com você! – berrou Keila, do outro lado, fugindo.
       – Não!!

       O grito sufocado de Memê partiu meu coração. Ela tentava alcançar o alto da cerca e seguir a sua namorada, que já ia longe, mas faltava um bocado. Seu autocontrole e sua apatia foram para o espaço quando ela começou a gritar para que Keila voltasse.
        E, claro, denunciou onde estávamos.
       Com medo de que ela despencasse dali eu não me escondi. Mas Memê não caiu, ficou pendurada nas grades chorando e olhando na direção em que a outra se fora. Os guardas não conseguiram tirá-la de lá e temiam que ela se jogasse. Amanheceu e logo as pessoas começaram a se juntar; alguns, trabalhadores, outros, curiosos que sabiam quem era ela: a menina que gostava de meninas.

        Então ele chegou e gritou seu nome do meio da multidão, que já se irritava com o atraso na saída do trem. Só assim ela resolveu descer. Braços fortes a agarraram e a arrancaram da cerca; ela se debatia com força, mas no fundo sabia que estava derrotada. As mesmas mãos que a arrancaram depois a afagaram, enrolando seu corpo feito uma bola, embalando-a como se fosse um bebê. Era seu pai. Ele tinha a aparência de um urso, com sua barba castanha e um espesso cabelo cacheado, mas também a delicadeza de uma mãe. Aquele foi o único momento de toda nossa amizade que eu tive uma baita inveja da Memê! E também a primeira vez que a vi única e simplesmente como uma menina.

       – Porquê papai? Porquê...?

       E enquanto ele sussurrava os porquês em seus ouvidos, Memê se acalmava, diminuindo os soluços. Ninguém ousou se aproximar deles quando se levantaram – na verdade ninguém queria ser fuzilado pelo pai da Memê, que mirava os presentes como se fosse arrancar o fígado de cada um que ousasse pensar mal de sua filhinha! Murmurava para ela palavras de conforto enquanto seguiam para o carro. Depois das portas batidas, os pneus cantaram. A multidão se dispersou e eu fiquei sem saber como ir para casa.



quinta-feira, 30 de junho de 2016

A Namorada Dela


Parte III - Carrinho


     Entrar para o time de futebol da escola foi libertador. Treinávamos quase todos os dias e quando não, jogávamos no play ou na rua. A Memê era ótima, incentivava e dava broncas na galera; na escola nosso time era misto, dividido em subequipes para os jogos internos, e até os garotos respeitavam ela. Aumentei minha cartela de amigos – e com isso as garotas da Gina tornaram-se meras conhecidas – no entanto não grudei na Memê feito chiclete: o futebol era a única coisa que tínhamos em comum: depois dos treinos ou de uma partida, cada uma seguia seu lado. Conversávamos geralmente entre um jogo e outro, ou durante a celebração de alguma vitória; ela me perguntava como eu estava, se passava bem, ou, caso eu houvesse comentado algum problema numa conversa anterior, ela retomava o assunto, bastante atenciosa. Porém, nunca dava brechas para que o foco fosse ela; eu, por outro lado, nunca me preocupei em saber mais.

            Os boatos começaram tal qual a missão hitleriana para difamar judeus: de maneira sutil. Eram cochichos por onde ela passava, desenhos pejorativos que circulavam por baixo das carteiras, pichações nas paredes, principalmente quando ela derrotava o time de alguém nas partidas internas. Eu ficava preocupada, mas ela não demonstrava abalo algum: cruzava os corredores exalando sua eterna autoconfiança, conversando alegremente com quem estivesse em sua companhia. Por vezes alguém apontava para um desenho novo e ela ria, pegava uma caneta e ainda retocava um detalhe aqui ou ali.  
          – Você acha que ela é isso que dizem por aí?  -  perguntou-me o Binho “Sorte de Principiante”, outro amigo que conquistei com o futebol e cuja relação era até mais próxima que a com Memê. Eu dei de ombros, pois era evidente a tentativa de desmoralizá-la, já que era rainha em campo. Ainda assim, fiquei me questionando se o fato dela ter outras preferências mudaria minha forma de tratá-la.
Não mudei, mas as outras meninas sim. Bastava Memê chegar ao vestiário para todas se cobrirem e discretamente deixarem o espaço. Apesar de se mostrar indiferente, ela tinha bastante ciência do que estava acontecendo.

       – Se vocês têm problemas comigo resolvam comigo, mas não descontem no nosso time! – bradou pelos corredores quando perdemos uma partida importante. O climão no vestiário piorou; as fofocas já atingiam a equipe. Por alguma razão achei que seria bom intervir e um dia, quando cruzei com ela no banheiro feminino, falei o que pensava:
           – Memê, acho bom você ir conversar com o treinador, não podemos continuar assim!
Silêncio no banheiro. Ela terminava de se vestir e me olhava através do espelho, curiosa.
          – O Binho não tem condições de ser o capitão, são três derrotas consecutivas, cinco no total do semestre. E a menos que queiramos continuar sendo um time de derrotados, precisamos reverter isso.
           – E você sugere o quê?
          – Que você seja a capitã do time. Todos aqui sabemos que você tem talento e é a melhor de nós para isso, de toda equipe, inclusive dos meninos.
Sentia os olhares das meninas em nós, principalmente as que não eram do time. Eu precisava restabelecer a autoconfiança da Memê, ainda que ela não admitisse o abalo, e reforçar a importância dela na condução da equipe.
         – Brisa, não é um capitão que faz um time, são todos. Se a galera não estiver interessada, podem estar os melhores craques do mundo que a equipe não vai pra frente. O que precisamos é de motivação e mais treinamento.
        – Podemos ficar mais meia hora depois dos treinos – disse uma das meninas, deixando claro que a conversa estava sendo ouvida
         – E treinar mais as técnicas de defesa – falou outra

         As ideias foram surgindo, com mais meninas do time se aproximando. Fizemos a reunião dentro do banheiro mesmo, depois juntamos os meninos e fomos até o treinador. Expusemos todas as propostas, inclusive a ideia que tive de tirar a braceleira do Binho – ele pareceu ficar chateado comigo, mas nada disse. Com a autoestima restabelecida e mais empenhados, voltamos a jogar melhor, mesmo não vencendo.
        Mas a história da reunião no banheiro rolou de boca em boca e tomou proporções inesperadas:
        Na semana seguinte, eu era a namorada dela.
       Enquanto eu fiquei chocada, Memê tirou sarro da situação, dizendo que eu não fazia o seu tipo. O meu grupinho de amigos em sala de aula também entendeu que era mais uma forma de abalar o time. No entanto, além das zoações na escola, tive que aturar a Gina e as amigas dela caçoando de mim no condomínio.

        A fofoca, porém, durou pouco tempo. Um dia aguardava no pátio a hora do treino quando uma enorme algazarra se formou no portão de saída. Vi o inspetor passar arrastando Memê pelo braço, enquanto outra professora conduzia uma garota mais velha – aquela na qual ela se debruçara quando me tornei a revelação futebolística da escola. Perguntei a uma das meninas próxima a mim o que estava acontecendo.

        – Você não soube? Tua namorada te traiu com outra.
      
      Aí eu descobri o motivo da confusão: Memê fora flagrada aos beijos com outra menina em um canto da escola.


quinta-feira, 28 de abril de 2016

A Namorada Dela

Parte II - Futebol é coisa de...?



       Não me tornei a melhor amiga de Memê naquele episódio da boneca; sendo bem sincera acho que nunca o fui. Aconteceu que passei a observá-la mais, sempre pensando nas poucas coisas que me disse. Por causa disto, ir brincar com Gina e seu séquito foi perdendo a graça, ainda mais que insistiam em brincar de “Barbie” só para poderem dividir a minha boneca entre elas. Até o dia que eu não quis brincar: pedi que avisassem quando tivessem outra coisa para fazer. A Gina, de raiva, mudou a brincadeira, mas proibiu as meninas de me chamarem. Fiquei em casa vendo televisão muitas tardes depois. Só percebi que havia sido excluída do grupo quando, numa tarde em que faltou luz somente na minha casa, pulava corda no play com algumas das garotas quando a Gina chegou do balé. Ela ficou ali parada, olhando aborrecida para nossa direção. Aos poucos, as meninas foram saindo da brincadeira e para cumprimentá-la.
– Vamos lá para casa, minha mãe vai fazer refresco para o lanche! – chamou ela. As meninas a seguiram e quando fui acompanhá-las fui barrada.
– Você não! – ela me disse, zangada. E sorrindo para as outras como se nada tivesse acontecido, seguiram para seu apartamento, deixando-me sozinha no play.
Ah, eu chorei pra caramba! E só não chorei mais porque achei um absurdo que me vissem chorando – ainda tinha meu orgulho! Não havia nada para fazer em casa então fiquei ali com a corda nas mãos, tentando pular pateticamente, a fim de que o esforço me distraísse do choro. Foi quando Memê atravessou o play, com aquele jeito de menino-jogador-de-futebol. Estava tão furiosa que xingou um palavrão cabeludíssimo (esqueci de mencionar que ela era muito, muito desbocada!) e jogou a bola que estava em suas mãos na minha direção, assustando-me.
– Oh meu Deus acertei você? Por favor, me desculpe... – desesperou-se ela, indo para perto de mim – Não chora... Onde machucou?
– Não me acertou, eu defendi... Estou triste por outra coisa...
Ela olhou para os lados e percebeu o pátio vazio.
– As meninas te deixaram de lado de novo, não é?
Fiz que sim com a cabeça.
– Aff... – bufou ela, mas percebendo que eu estava realmente magoada não disse nada; apenas ficou ali do meu lado, entre penalizada e irritada. Parecia que algo brigava dentro dela, pois abriu e fechou a boca umas três vezes, sem que nada saísse. Ate que levantou-se, foi até a bola e gritou:
– Então, me mostra esse lance de novo? – e deu o um chutão na bola, em minha direção.
– ‘Tá maluca?? – gritei com ela, depois de golpear a bola de qualquer jeito.
– Caracas... tu é boa nisto! Faz outra vez?
– Fazer o que?
Aí ela explicou: estava furiosa porque seu treinador dissera que ela era ruim nos pênaltis e que precisava treinar mais.
– Você pode defender para mim?
– Você vai chutar igual fez agora?
Ela riu do meu desespero
– Não... Talvez um pouco mais fraco.

Ela começou a chutar e eu a defender. De início os chutes eram leves, depois ela começou a colocar impulso neles. Deixei um ou dois passarem.
– Você é realmente boa! Já pensou em jogar no time da escola?
– Claro que não! Futebol é coisa de menino... – falei, até que dei de cara com ela e suas sobrancelhas arqueadas – quer dizer... Não, nunca pensei.
– Pois deveria! Praticar esportes faz bem para o corpo, além de ocupar a mente. Melhor do que ficar choramingando por amigos que não se tem!
Ui! Eu poderia ter dormido sem esta, eu sei. Entretanto serviu para que eu aprendesse a dar valor a mim mesma, a quem realmente se importa comigo.
Depois disso perdi o interesse em ficar no play, brincava em casa sozinha, criando meu próprio mundo de sonhos, ao mesmo tempo em que reforçava meus laços de amizade na escola. Passaram-se alguns dias até que tornasse a falar com Memê, uma vez que as nossas ocupações dia a dia, tão distintas, impedia de nos cruzarmos. Ela estava focadíssima no futebol, sempre disputando um torneio aqui e outro acolá; quando não, jogava com os meninos da vizinhança. Eu havia descoberto o mundo da leitura e ficava horas e horas em casa afundada em um livro: enquanto as garotas ansiavam por novas bonecas ou sandálias com glitter e outros frufrus, eu queria a coleção do Sítio do Pica-pau Amarelo. Bem, a coleção era tão cara quanto a Barbie; ganhei outra boneca "Chuquinha", mas já havia aprendido que o que eu tinha era o melhor que eu poderia ter.
Até que um dia, nas férias, quando desta vez faltara luz no condomínio todo, fui para o pátio ler – estava quente demais em casa. Algumas mulheres que não podiam ver suas novelas e seus programas de fofoca faziam novelo com a vida dos outros, criando seu próprio programa. As meninas estavam lá, com seus belos presentes de Natal, e eu, com um livro “sequestrado” da biblioteca da escola – ele seria devolvido sem precisar de resgate quando as aulas retornassem! Os meninos jogavam bola como sempre.
 E Memê no meio deles.
– Brisa?! – chamou ela – Tá fazendo o quê?
Apontei para o livro.
– Vem jogar com a gente, está faltando um no meu time!
– “'Tá maluca Memê?” – ouvi um garoto sussurrar, mas ela respondeu-lhe com um “cala a boca” e o garoto engoliu suas opiniões. Isso era outro fato interessante da Memê: ela tinha a liderança nata em seu olhar, não precisava de chantagens como a Gina. Ela falava e os outros obedeciam.
Deixei meu livro no canto e fui jogar. Vi os risinhos de satisfação do time adversário e o olhar de preocupação da minha equipe. Ia ser um massacre, e eu, o “boi de piranha” da história.
– Você vai ficar no gol. É só fazer o que fez naquele dia comigo, eles não chutam tão forte quanto eu.
Não foi fácil. O time adversário abriu com diferença de 3 gols. Eu tinha medo deles, o seu olhar me deixava desconfortável. Enquanto meu time me xingava, Memê só olhava para mim, inexpressiva. Depois do quarto gol da outra equipe, ela foi até as balizas conversar comigo.
– Brisa, o time somos só eu e você. Os garotos não são muito bons, e eu não posso estar no ataque e na defesa ao mesmo tempo. É só um jogo, uma brincadeira, mas eu preciso treinar para o time da escola. Segura a defesa para mim, por favor!
Eu respirei fundo...
... E dei o máximo que eu podia!
 
Nosso time perdeu não porque o adversário fez mais gols depois mas sim porque o goleiro deles era muito bom. Depois que ela falou comigo, passei a imaginar um monte de "Memês" no campo e ficou mais fácil segurar as bolas que vinham. Arrisquei até um chute a gol da minha base, mas o goleiro defendeu. Ainda assim todos olharam na minha direção, com pontos de interrogação na testa. Apenas Memê sorria.
– Olhem para a bola pô! – ousei gritar para o time, louca para deixar de ser o foco de suas atenções. Nosso time fez gols, todos de Memê, mas não deu para virar o placar.
– Sorte de principiante! – disse aquele garoto que questionou minha entrada no time. Seus lances eram bons, mas não foram suficientes para balançar a rede!

Na escola, aquele mesmo grupinho que jogava no condomínio se reuniu num daqueles dias em que os professores resolvem cuidar de suas vidas em vez de vir dar aula. O professor de Educação Física se viu às voltas com três turmas diferentes: resolveu deixar fazer o que quisessem! Os garotos mais velhos tomaram posse da bola e do campo para uma partida de futebol (e fiquei com pena dos meninos da minha turma, que imploravam atenção durante a escalação dos times). Para as meninas não ficarem ociosas, o professor separou uma área da quadra para um jogo de queimada. Todos sabem como é queimada na escola, logo eu e minhas colegas de classe nem cogitamos participar!
 Foi quando ouvi chamarem meu nome.
 - Brisa?! Você está no meu time. Vai para o gol.
Era o garoto do condomínio, o “Sorte de principiante”.
Sabe aquele momento em que tudo silencia e todos parecem se mover em câmera lenta? Pois, é... Até as meninas que selecionavam o time de queimada pararam. O pessoal da minha turma era a mais jovem naquele campo, ninguém fora chamado para nada e eu estava lá, a caminho do gol. Uma explosão de gargalhadas veio do time adversário, quando um grito fora da quadra a silenciou.
– Vai lá Brisa! Arrasa eles!

Era a Memê.

Ela estava ao lado de uma garota mais velha, do ensino médio e era a primeira vez que eu a via no meio de outras meninas. Eu deveria ter reparado que aquela não era uma garota qualquer para a Memê, mas estava tão absorta em minha situação que aquele primeiro indício passou despercebido. Eu caminhava para o gol como quem ia para a forca. Não conhecia aqueles caras, não sabia como jogavam. Resultado: deixei passar um bocado de gols. Mais uma vez o time adversário zombava de mim e meu time queria me comer viva. Chamei o garoto que me convocou, pois eu queria sair do jogo.
– Olha, eu sei que você joga bem, mas se não joga, tenta fazer o mesmo milagrezinho daquela tarde, está bem?
E eu fiquei lá, diante de um pênalti.
– Segura essa p#&%@ Brisa! – gritou Memê lá de fora.

O adversário chutou.
E eu defendi.

Ela gritou tanto que chamou de novo a atenção do povo para o jogo, que já havia perdido o interesse. Preciso explicar que a quadra de nossa escola fica próxima ao pátio de intervalo, ou seja, a turma que estiver livre pode assistir o que está acontecendo lá – facilitando a atualização dos vexames da semana e permitindo que as meninas mais velhas possam admirar seus paqueras! Outros alunos pararam para ver o jogo, a multidão crescia ao redor da quadra, mas eu parei de me importar. Eu podia fazer aquilo, talvez não tão bem quanto esperassem, mas o melhor que dava para fazer. Cumpri meu papel: defendi todas as jogadas seguintes. Minhas defesas eram por vezes patéticas, mas a galerinha da minha classe começou a torcer por mim – afinal, era a única da turma em campo, e ainda que isto fosse humilhante para os meninos, nossa classe tinha um princípio de cooperação que não se encontra hoje em dia. A algazarra foi chamando a atenção e me motivando.
– Este é o seu truque né “principiante”? Deixá-los pensar que podem ganhar e depois dar-lhes uma surra!  – comentou o menino, sorrindo.
– Brisa. Meu nome é Brisa! – respondi, mas de forma divertida. Estava tão feliz com aquele comentário que chutei a bola forte demais: ela atravessou a quadra e parou na rede.

Gol.
Meu.

Só houve um grito, vindo de fora da quadra!
 - Arrasou Brisaaaaaaaaa!

Aí a galera explodiu em palmas e vivas enquanto o time adversário e meu próprio time olhavam para mim como se eu fosse um ser sobrenatural. O professor apitou o fim da partida, e o pessoal da minha turma veio me cumprimentar. Em meio a tantos apertos de mão, tapinhas nas costas e mexidas no cabelo, lancei um olhar além da quadra à procura da Memê. Ela já estava de costas, à caminho de um lugar qualquer com os braços jogados sobre os ombros daquela garota estranha, enquanto esta enlaçava sua cintura preguiçosamente. Pareceu que Memê acariciou-lhe o cabelo e ela inclinou a cabeça em sua direção: Memê virou-se, beijou-lhe o ombro e repousou ali. Mas fui tomada pela turma curiosa e não consigo ter certeza se realmente vi isto ou se o que aconteceu com elas depois me fez criar esta memória.
– Brisa, você é do sexto ano A certo? – perguntou-me o professor. Fiz que sim com a cabeça – ‘Tá bem... treino amanhã depois da aula. Vamos fazer uma avaliação.
Eu estava sendo convocada para fazer parte do time da escola.
No dia seguinte fiz a avaliação.

Resultado?

Entrei para o time.


           Futebol também é coisa de menina!

sexta-feira, 15 de abril de 2016

A Namorada Dela

Parte I - A Boneca


            Estou com saudades da minha amiga Memê. Se eu soubesse por onde ela anda, eu enviaria uma carta, um e-mail...Mas Memê nunca me diz onde está, apenas recebo seus postais algumas vezes por ano, sem que eu possa respondê-la. É melhor do que nada, eu sei. Ainda assim, gostaria de escrever para ela.
     
         Conheci Memê quando sua família mudou-se para o nosso condomínio – na verdade, um daqueles conjuntos habitacionais precários que o governo concede aos moradores quando a imprensa pressiona sobre algum desastre na favela! Eu tinha oito anos, ela dez. Além de mais velha, mais alta, mas não se podia dizer que era bonita: magricela, tinha um cabelo comprido, de um tom loiro sujo, uns olhos grandes esverdeados e a pele curtida de sol. Memê poderia ser modelo se quisesse, não pela beleza, como eu disse, mas pelo seu porte: havia nela uma segurança, um domínio de presença que calava qualquer desavença, qualquer assunto que estivesse sendo discutido quando ela passava. Era uma menina, mas parecia ter toda a vivência de uma pessoa antiga. Pouco se importava com a própria aparência, vestia-se largada como um menino, e assim ninguém reparava muito nela no quesito "beleza exterior". Se bem que quando chegou, as meninas do condomínio ficaram um pouco inseguras, e fizeram o que todos fazem quando se sentem ameaçados: atacaram. Como ela não ligou para seus comentários, as meninas a deixaram em paz.
  
         Só fui conversar com a Memê quase um ano depois de sua chegada – antes eram apenas aqueles comprimentos educados, ou nem isso. Naquele dia, Gina, "a Dona do Play", resolveu que só iriam brincar aquelas que tivessem "Barbie". Eu não tinha a tal boneca, até as falsas eram caras demais. Estava no corredor do meu andar, olhando elas brincarem no play quando Memê chegou: meião até os joelhos, chuteiras no lugar das sandalinhas cor de rosa que toda menina usava, bermudão, top, a blusa do uniforme amarrada na mochila e um walkman com fones de arco de metal nos ouvidos. Trocamos olhares enquanto ela destrancava a porta. Entrou, saindo meia hora depois, com cheiro de sabonete e colônia. Fato que já tinha um compromisso, mas mudou de ideia e veio debruçar-se no peitoril do corredor comigo.
            
          – O que está acontecendo lá embaixo? – quis saber. Sua voz era determinada, e me fez sentir menor do que eu estava me sentindo.
– Uma festa da Barbie.
– E você não foi convidada?
– Não. Só pode ir quem tem Barbie e eu não tenho.
Silêncio
– Você gostaria de ir?
– Claro! Todas as minhas amigas estão lá!
Memê olhou diretamente para mim, séria. Naquele instante parecia muito adulta, não pela severidade do olhar, mas pela sinceridade que expressava:
– Se as pessoas que você diz serem suas amigas fossem suas amigas de verdade, iriam gostar de você pelo que você é e não pelo que você tem. Muito menos dariam uma festa e proibiriam você de entrar.
Naquela hora pensei: “quem é esta garota metida a besta para falar assim das minhas amigas?”. Mas Memê me olhava tão seriamente que engoli a frase, e tornei a mirar o playground, aborrecida. Um tempo depois senti um tapinha nas minhas costas:

– Vem, acho que posso te arrumar um “convite”.

Eu não entendi muito bem o que ela quis dizer, mas após insistir que eu fosse a sua casa, concordei em seguí-la. Memê morava com a avó, D. Dora, senhora simpática que costumava distribuir doces no dia de São Cosme e São Damião. “E não se esqueçam de Dom Um”, dizia ela, macumbeira que só, o que deixava as crentes do condomínio enfurecidas! Apesar de todo discurso de que macumba era coisa do demônio, eu sempre achava que D. Dora merecia o Céu mais que algumas pessoas devotas de igrejas: ela sempre tinha um jeito doce para conversar conosco, e quando proibia algo, explicava o porquê tão bem explicadinho que a gente até se arrependia de ter pensado em fazer a tal coisa errada; as outras, por sua vez, nos chamavam de capetas pra baixo!
O apartamento de Memê e D. Dora era como qualquer outro naquela época: alguns santos espalhados na sala cor-de-rosa, cortinas de continhas, colchas de retalhos cobrindo os sofás e cheiro de coisa velha. Cumprimentei D. Dora, meio acanhada, enquanto Memê enfiou-se cortina adentro. A velha senhora assistia à novela da tarde bebendo um daqueles sucos de xarope e me ofereceu um pouco – lembro que estava delicioso, e aliviou um pouco a tensão da situação inusitada. Memê logo voltou com uma boneca... na embalagem!

– Para você!
– M-mas está novinha! Você não quer?
– Meu pai sempre me dá uma dessas, só que eu não brinco mais com bonecas. Pode levar.

Eu fiquei tão maravilhada que quando me lembrei de agradecer, Memê já havia ido embora. Desci correndo para brincar com as meninas e a Gina já ia me proibir de participar da festa, quando mostrei a boneca. As meninas ficaram fascinadas: a boneca era rara, de uma edição limitadíssima. A Gina ficou logo enciumada, e enquanto passava a festa tentando minimizar as qualidades da “minha” boneca, eu pensei sobre o que a Memê havia dito sobre amizade: ela, que nunca havia trocado uma palavra comigo, me deu um presente raro; aquelas que sempre conviveram comigo, me excluíram da brincadeira quando o que eu tinha não era suficiente para ficar por perto.
A festinha ainda acontecia quando peguei a boneca e fui para casa sem falar com ninguém, mas antes passei na casa de Memê para devolver o presente. D. Dora, cheia de bobes na cabeça e um sorriso largo no rosto, foi chama-la. Memê esfregava os cabelos recém-lavados numa toalha quando entrou na sala.

– Toma: acho que você não sabia que ela era uma boneca rara, então trouxe de volta.
– Sim, eu sei disso, por isso dei para você!
Aquilo me surpreendeu
– Ela é sua, pegue.
Eu me agarrei à boneca, pois queria muito ficar com ela. Memê abriu um sorriso e eu lhe agradeci, mas insisti em devolver.
– Sabe, você tinha razão – falei – elas gostaram mais de mim hoje só porque eu tinha uma boneca rara. Elas não são amigas de verdade!

Na manhã seguinte havia um embrulho em minha porta, com o seguinte bilhete: “A Barbie falou que você é a melhor amiga que ela gostaria de ter. Não aceito devolução”


A boneca era minha, oficialmente!

                                                           *  *  *

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Alecrim


Beirava a madrugada, quando o vento trouxe o seu cheiro para mim.
Uma pequena conexão
Que ativou todos os meus sentidos
E despertou uma saudade sem fim.
Não era você: deveriam ser os seus,
Que circulam ao meu redor, 
Protegidos pela escuridão da noite,
Fazendo do mundo um imenso jardim.

Ainda assim - ainda assim! 
Eu imaginei a brisa atravessando vales, 
Uma extensa baía 
E chegando até a mim.
Apenas para me trazer um recado:
“Estou bem, nada mais é ruim!”.

Isso é a vida: aprendizados constantes, 
Perdas e ganhos, 
Dores e alegrias.
E no final, o mais importante
São as lembranças boas,
Vindas da brisa suave

Com cheirinho de Alecrim.








* para Isabella Libardi e Alecrim :)


segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Não "tinha" problema...

Já diziam os versos da canção "A lista" de Oswaldo Montenegro:
Faça uma lista de grandes amigos,
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais

Você cresce e é claro que as coisas mudam: seus pensamentos, as pessoas ao seu redor... mas isso não é um problema.
É?
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É estranho como a gente muda nosso pensamento no decorrer do tempo.

Quando criança eu convivia com um grupinho de amigos que, além de termos a mesma idade, éramos vizinhos. Inicialmente éramos eu, Dani, Drica, Bianca e Danubia. Estávamos sempre uma na casa das outras, brincando de casinha e/ou boneca (por que essas são as principais brincadeiras das meninas?). Nossa imaginação era incrível: conseguíamos transformar um espaço de dois metros quadrados em um palácio, voar pelo espaço e um segundo depois ancorarmos no fundo do mar. Não tinha problema; o mundo era só nosso.

Nessa época os meninos não estavam conosco, fazendo parte de nosso grupo mais tarde:  Fred,  Tom, Vitor, Júlio e Biel. Eles também – com exceção do Biel, cuja família mudou-se para nossa rua mais tarde – não saiam uns das casas dos outros e suas brincadeiras eram bola e games (porquê estas são as principais brincadeiras dos meninos?). Não tinha problema, pois não existiam tantas responsabilidades.

Fred é primo da Dani, e começamos a brincar com os meninos depois que ele e a mãe dele fizeram uma visita à minha casa. Eu brincava no quintal com as meninas quando eles chegaram, ele ficou nos observando com aqueles terríveis “olhos de pidão” que só sabemos fazer direito quando somos crianças e pediu a Dani se podia brincar também. Claro que não houve problemas, e a partir dali sempre havia uma porção de crianças na minha casa, correndo de um lado para o outro.

Mesmo incluindo os meninos nas nossas vidas, de vez em quando as meninas se reuniam para fazermos algo só nosso, como projetar nossas aspirações para a vida adulta, por exemplo. Eu, Danubia e Dani queríamos ser veterinárias, montávamos o nosso próprio hospital e “operávamos” formiguinhas acidentadas (que infelizmente não sobreviviam!). Bianca queria ser atriz, Drica, modelo, logo, vira e mexe estávamos brincando de teatro, desfile,  enchendo nossa cara de maquiagem e roubando as roupas de nossas mães! De sua parte, os meninos não ficavam tão de fora destas projeções; cada qual inseria em suas brincadeiras aquilo que queria ser: Tom queria ser piloto de avião e montava uma coleção deles; Júlio, piloto de Fórmula 1, não perdendo uma corrida sequer; Vitor queria ser policial, para prender os bandidos que mataram seu pai durante um assalto; Biel, um famoso jogador de futebol e o Fred ansiava em ser advogado, para impedir que as crianças sofressem durante a separação de seus pais como ele sofreu (nenhum dos dois chegava a um consenso de com quem a criança ficaria, até que o Juiz deu a guarda para a avó materna). As brincadeiras eram relacionadas a esses sonhos e a esses desejos, então, não tinha problema, estávamos pensando em nosso futuro.

Cada um de nós tinha a sua individualidade. Eu sempre fui a mais centrada, assim como Danubia. Dani e a Drica eram as mais agitadas e Bianca a mais...“fresca”! Da parte dos meninos, Fred carregava o papel de líder por natureza (e também por ser o mais velho), Tom e Vitor, os “comediantes” (aqueles caras que sempre aprontam alguma!), Júlio o mais bonitinho e calmo e Biel o mais tímido. Aliás, Biel entrou para nosso grupo quando os limites do meu quintal precisaram ser ultrapassados, pois o espaço era pequeno demais para nossa imaginação, e começamos a brincar na rua. Ele, que não conhecia ninguém, ficava observando de sua varanda, até que um dia faltou um componente para o jogo de queimado e resolvemos chama-lo. Não houve problemas: a partir daquele dia estava formado o “Grupo da Rua 4” .

O tempo foi passando e chegou a época em que ficávamos mais tempo paradas em frente ao espelho, observando nosso corpo mudar. Eu não queria crescer, queria ser eternamente criança e brincar a vida toda...

...mas o resto da turma não.

Dani e Drica estavam loucas para se tornarem adolescentes, sair á noite e namorar. Danúbia não se ligava muito em namoros, mas queria muito ser independente. E Bianca só queria o carro – e os cartões de crédito! – do pai. Os garotos pareciam se importar pouco com isto, apesar de serem os primeiros a soltarem aquelas piadinhas de “fulano gosta de ciclano” (propositadamente dirigidas para Biel e Dani). Tanto em casa quanto na escola o assunto era só namoro, e eu achava tão chato: havíamos prometido não mudar e estávamos mudando. Dani estava se tornando cada vez mais irresponsável na escola, já recebendo 3 advertências e uma suspensão de uma semana, Drica cada vez mais atirada com os garotos e Bianca demorava mais de uma hora na frente do espelho quando a chamávamos para brincar na rua. Eu disse brincar? Não, não brincávamos mais, apenas ficávamos conversando sobre uma porção de coisas – o que não era de todo ruim – e cada vez tendo menos vontade de jogar alguma coisa. Ainda não tinha problema, pois vivíamos cansados demais com os estudos para fazermos qualquer coisa depois da escola.

Chegamos à puberdade para a glória das garotas e para meu desespero. Era o ponto final de minha infância. Início daquele período em que você não sabe o que é: ora é muito velha para fazer tal coisa, ora muito nova. Época em que não se pode falar nada de um menino que já acham que está gostando dele (ok, na maioria das vezes é verdade!), que você tem que medir suas roupas para não passar por assanhada demais (salve o santo machismo nosso, que sempre rondou as pobres almas femininas ...). Ficávamos pouco com os meninos, nos reunindo apenas para sair ou assistir alguns filmes. Eu tentava levar tudo como uma adolescente normal, mas na maioria das vezes colocava uma máscara em meu rosto para esconder o tédio de tudo aquilo. Era incrível como as meninas só sabiam falar de garotos!! Dani e Drica pareciam disputar a quantidade de bocas beijadas: “Temos que aproveitar as coisas boas da vida”, dizia Drica a cada vez que eu pedia que maneirasse. “É, mas tente se valorizar um pouco, para não sofrer depois!”, dizia Danubia, reforçando minha reprimenda. “Amores, beijo não tira a virgindade ok?!Então deixem de ser chatas e nos deixem aproveitar – não temos culpa se os caras preferem a gente!” ironizava a Dani, defendendo a outra amiga. E aí eu entrava para apartar uma possível discussão entre eles, pois a Bianca já nos esquecia nos braços de um novo namorado.

Os garotos se tornaram insuportavelmente chatos: Júlio e Vitor mantiveram as traquinagens, e agora faziam o estilo “perdemos o amigo, mas não a piada”. Não se importavam se nestas brincadeiras magoavam as pessoas – apesar de, devo admitir, eles elevavam meu astral de vez em quando. Fred se tornou mais sério e quieto, parecia obcecado pelos estudos e notas, o que não era ruim, mas era... estranho. Parecia perdido e distante em seus próprios pensamentos e quando estava conosco, era como se não estivesse. Biel era um queridinho, e sua timidez ficara na infância e o Tom... ah... o Tom... Não sei quem foi que lhe disse que fumar lhe dava um ar de independência, maioridade, responsabilidade, blá, blá, blá. E ele dizia que não tinha problema, que ia parar por ali.

Onde nós erramos? Em que momento nosso mundo de fantasia deixou de ser um plano para o futuro e passou a ser “bobagens” como todos gostavam de dizer? Quando fazer coisas erradas passou a ser mais legal do que fazer as coisas certas, e porquê não paramos?

O que aconteceu foi que a minha querida Danubia, na sua mais pura inocência, ficou grávida aos 16 anos de ninguém nada mais nada menos que o queridinho do Biel! Tiveram que casar. Dani ficou furiosa, pois apesar de todos os peguetes que possuía, era apaixonada pelo Biel. Então para não se sentir preterida, passou a sair com vários caras de uma vez e, depois de uma experiência lastimável, foi salva por uma igreja evangélica, arrependendo-se de seu caminho torto. Agora é missionária e leva paz para as pessoas em lugares pobres mundo afora. Bianca rebelou-se contra os pais, saiu de casa e nunca mais voltou. Falam tantas histórias sobre ela que eu prefiro não acreditar em nenhuma delas e torço para que esteja feliz fazendo o que quer, onde quer que seja esse lugar. Drica perdeu a parceira de disputas mas não perdeu o ritmo; ao menos agora suas ações estão de acordo com sua maioridade e se viver assim a faz feliz, é o melhor que podemos esperar.

Quanto aos meninos, já disse que o Biel virou papai. Ele sempre gostou da Danubia na verdade, mas sentia-se intimidado demais por ela para se declarar. E quando finalmente teve coragem, foi longe demais. Hoje trabalha e estuda para manter o filho e a esposa – que, garantiu-me, assim que o garoto entrar em uma creche terminará o colegial (e me convence por “a mais b” que ainda temos chances de ter uma clínica veterinária!). O Fred se isolou um pouco de todos nós depois da morte do Tom... Bem, cada um se refugiou em algo depois da morte dele...O Tom queria ser piloto de avião e se tornou aviãozinho dos traficantes de drogas do bairro, e um viciado também. O Vitor jamais aceitara isso, já havia perdido um pai para a bandidagem, não queria perder um amigo. Mas um dia, num momento de crise e de “prova de superioridade”, Tom espancou o Vitor com muita força, até quase a morte, por este tentar dar-lhe uma lição de moral. Vitor sobreviveu, mas teve sequelas graves. Quando estava lúcido o suficiente para perceber o infortúnio que causara ao amigo, Tom se matou. Júlio entrou para a polícia, queria tentar mudar esta realidade de drogas e bandidagem, mas ele é só um em meio a um mar de corrupção. Não sei até quando ele se manterá. Celebro internamente cada dia em que sei que ele voltou para casa e para a sua família...

E eu? Bem, eu sobrevivi, apesar de todas as mudanças. Como o Fred, eu me isolei de quase todos - sou madrinha do filho de Danubia e Biel. Ela sempre me pergunta do Fred, do porquê eu não dar uma chance de tentar ser feliz com ele. E eu lhe explico pela enésima vez que eu simplesmente não consigo, pois é muito difícil estar com alguém que me recorda uma infância maravilhosa e uma adolescência desastrosa, simplesmente porque  nós dois optamos por nos manter à parte do que estava acontecendo. Intimamente eu o culpo, e me culpo também. E agora, não sei o que faço da minha vida, não sei o que ser quando crescer.

Eu disse crescer? Esqueci, já sou grande e agora preciso encarar todos os problemas que tenho...


*Obs: texto de 1999 para trabalho de Psicologia sobre "Período de Desenvolvimento" - atualizado