segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Não "tinha" problema...

Já diziam os versos da canção "A lista" de Oswaldo Montenegro:
Faça uma lista de grandes amigos,
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais

Você cresce e é claro que as coisas mudam: seus pensamentos, as pessoas ao seu redor... mas isso não é um problema.
É?
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É estranho como a gente muda nosso pensamento no decorrer do tempo.

Quando criança eu convivia com um grupinho de amigos que, além de termos a mesma idade, éramos vizinhos. Inicialmente éramos eu, Dani, Drica, Bianca e Danubia. Estávamos sempre uma na casa das outras, brincando de casinha e/ou boneca (por que essas são as principais brincadeiras das meninas?). Nossa imaginação era incrível: conseguíamos transformar um espaço de dois metros quadrados em um palácio, voar pelo espaço e um segundo depois ancorarmos no fundo do mar. Não tinha problema; o mundo era só nosso.

Nessa época os meninos não estavam conosco, fazendo parte de nosso grupo mais tarde:  Fred,  Tom, Vitor, Júlio e Biel. Eles também – com exceção do Biel, cuja família mudou-se para nossa rua mais tarde – não saiam uns das casas dos outros e suas brincadeiras eram bola e games (porquê estas são as principais brincadeiras dos meninos?). Não tinha problema, pois não existiam tantas responsabilidades.

Fred é primo da Dani, e começamos a brincar com os meninos depois que ele e a mãe dele fizeram uma visita à minha casa. Eu brincava no quintal com as meninas quando eles chegaram, ele ficou nos observando com aqueles terríveis “olhos de pidão” que só sabemos fazer direito quando somos crianças e pediu a Dani se podia brincar também. Claro que não houve problemas, e a partir dali sempre havia uma porção de crianças na minha casa, correndo de um lado para o outro.

Mesmo incluindo os meninos nas nossas vidas, de vez em quando as meninas se reuniam para fazermos algo só nosso, como projetar nossas aspirações para a vida adulta, por exemplo. Eu, Danubia e Dani queríamos ser veterinárias, montávamos o nosso próprio hospital e “operávamos” formiguinhas acidentadas (que infelizmente não sobreviviam!). Bianca queria ser atriz, Drica, modelo, logo, vira e mexe estávamos brincando de teatro, desfile,  enchendo nossa cara de maquiagem e roubando as roupas de nossas mães! De sua parte, os meninos não ficavam tão de fora destas projeções; cada qual inseria em suas brincadeiras aquilo que queria ser: Tom queria ser piloto de avião e montava uma coleção deles; Júlio, piloto de Fórmula 1, não perdendo uma corrida sequer; Vitor queria ser policial, para prender os bandidos que mataram seu pai durante um assalto; Biel, um famoso jogador de futebol e o Fred ansiava em ser advogado, para impedir que as crianças sofressem durante a separação de seus pais como ele sofreu (nenhum dos dois chegava a um consenso de com quem a criança ficaria, até que o Juiz deu a guarda para a avó materna). As brincadeiras eram relacionadas a esses sonhos e a esses desejos, então, não tinha problema, estávamos pensando em nosso futuro.

Cada um de nós tinha a sua individualidade. Eu sempre fui a mais centrada, assim como Danubia. Dani e a Drica eram as mais agitadas e Bianca a mais...“fresca”! Da parte dos meninos, Fred carregava o papel de líder por natureza (e também por ser o mais velho), Tom e Vitor, os “comediantes” (aqueles caras que sempre aprontam alguma!), Júlio o mais bonitinho e calmo e Biel o mais tímido. Aliás, Biel entrou para nosso grupo quando os limites do meu quintal precisaram ser ultrapassados, pois o espaço era pequeno demais para nossa imaginação, e começamos a brincar na rua. Ele, que não conhecia ninguém, ficava observando de sua varanda, até que um dia faltou um componente para o jogo de queimado e resolvemos chama-lo. Não houve problemas: a partir daquele dia estava formado o “Grupo da Rua 4” .

O tempo foi passando e chegou a época em que ficávamos mais tempo paradas em frente ao espelho, observando nosso corpo mudar. Eu não queria crescer, queria ser eternamente criança e brincar a vida toda...

...mas o resto da turma não.

Dani e Drica estavam loucas para se tornarem adolescentes, sair á noite e namorar. Danúbia não se ligava muito em namoros, mas queria muito ser independente. E Bianca só queria o carro – e os cartões de crédito! – do pai. Os garotos pareciam se importar pouco com isto, apesar de serem os primeiros a soltarem aquelas piadinhas de “fulano gosta de ciclano” (propositadamente dirigidas para Biel e Dani). Tanto em casa quanto na escola o assunto era só namoro, e eu achava tão chato: havíamos prometido não mudar e estávamos mudando. Dani estava se tornando cada vez mais irresponsável na escola, já recebendo 3 advertências e uma suspensão de uma semana, Drica cada vez mais atirada com os garotos e Bianca demorava mais de uma hora na frente do espelho quando a chamávamos para brincar na rua. Eu disse brincar? Não, não brincávamos mais, apenas ficávamos conversando sobre uma porção de coisas – o que não era de todo ruim – e cada vez tendo menos vontade de jogar alguma coisa. Ainda não tinha problema, pois vivíamos cansados demais com os estudos para fazermos qualquer coisa depois da escola.

Chegamos à puberdade para a glória das garotas e para meu desespero. Era o ponto final de minha infância. Início daquele período em que você não sabe o que é: ora é muito velha para fazer tal coisa, ora muito nova. Época em que não se pode falar nada de um menino que já acham que está gostando dele (ok, na maioria das vezes é verdade!), que você tem que medir suas roupas para não passar por assanhada demais (salve o santo machismo nosso, que sempre rondou as pobres almas femininas ...). Ficávamos pouco com os meninos, nos reunindo apenas para sair ou assistir alguns filmes. Eu tentava levar tudo como uma adolescente normal, mas na maioria das vezes colocava uma máscara em meu rosto para esconder o tédio de tudo aquilo. Era incrível como as meninas só sabiam falar de garotos!! Dani e Drica pareciam disputar a quantidade de bocas beijadas: “Temos que aproveitar as coisas boas da vida”, dizia Drica a cada vez que eu pedia que maneirasse. “É, mas tente se valorizar um pouco, para não sofrer depois!”, dizia Danubia, reforçando minha reprimenda. “Amores, beijo não tira a virgindade ok?!Então deixem de ser chatas e nos deixem aproveitar – não temos culpa se os caras preferem a gente!” ironizava a Dani, defendendo a outra amiga. E aí eu entrava para apartar uma possível discussão entre eles, pois a Bianca já nos esquecia nos braços de um novo namorado.

Os garotos se tornaram insuportavelmente chatos: Júlio e Vitor mantiveram as traquinagens, e agora faziam o estilo “perdemos o amigo, mas não a piada”. Não se importavam se nestas brincadeiras magoavam as pessoas – apesar de, devo admitir, eles elevavam meu astral de vez em quando. Fred se tornou mais sério e quieto, parecia obcecado pelos estudos e notas, o que não era ruim, mas era... estranho. Parecia perdido e distante em seus próprios pensamentos e quando estava conosco, era como se não estivesse. Biel era um queridinho, e sua timidez ficara na infância e o Tom... ah... o Tom... Não sei quem foi que lhe disse que fumar lhe dava um ar de independência, maioridade, responsabilidade, blá, blá, blá. E ele dizia que não tinha problema, que ia parar por ali.

Onde nós erramos? Em que momento nosso mundo de fantasia deixou de ser um plano para o futuro e passou a ser “bobagens” como todos gostavam de dizer? Quando fazer coisas erradas passou a ser mais legal do que fazer as coisas certas, e porquê não paramos?

O que aconteceu foi que a minha querida Danubia, na sua mais pura inocência, ficou grávida aos 16 anos de ninguém nada mais nada menos que o queridinho do Biel! Tiveram que casar. Dani ficou furiosa, pois apesar de todos os peguetes que possuía, era apaixonada pelo Biel. Então para não se sentir preterida, passou a sair com vários caras de uma vez e, depois de uma experiência lastimável, foi salva por uma igreja evangélica, arrependendo-se de seu caminho torto. Agora é missionária e leva paz para as pessoas em lugares pobres mundo afora. Bianca rebelou-se contra os pais, saiu de casa e nunca mais voltou. Falam tantas histórias sobre ela que eu prefiro não acreditar em nenhuma delas e torço para que esteja feliz fazendo o que quer, onde quer que seja esse lugar. Drica perdeu a parceira de disputas mas não perdeu o ritmo; ao menos agora suas ações estão de acordo com sua maioridade e se viver assim a faz feliz, é o melhor que podemos esperar.

Quanto aos meninos, já disse que o Biel virou papai. Ele sempre gostou da Danubia na verdade, mas sentia-se intimidado demais por ela para se declarar. E quando finalmente teve coragem, foi longe demais. Hoje trabalha e estuda para manter o filho e a esposa – que, garantiu-me, assim que o garoto entrar em uma creche terminará o colegial (e me convence por “a mais b” que ainda temos chances de ter uma clínica veterinária!). O Fred se isolou um pouco de todos nós depois da morte do Tom... Bem, cada um se refugiou em algo depois da morte dele...O Tom queria ser piloto de avião e se tornou aviãozinho dos traficantes de drogas do bairro, e um viciado também. O Vitor jamais aceitara isso, já havia perdido um pai para a bandidagem, não queria perder um amigo. Mas um dia, num momento de crise e de “prova de superioridade”, Tom espancou o Vitor com muita força, até quase a morte, por este tentar dar-lhe uma lição de moral. Vitor sobreviveu, mas teve sequelas graves. Quando estava lúcido o suficiente para perceber o infortúnio que causara ao amigo, Tom se matou. Júlio entrou para a polícia, queria tentar mudar esta realidade de drogas e bandidagem, mas ele é só um em meio a um mar de corrupção. Não sei até quando ele se manterá. Celebro internamente cada dia em que sei que ele voltou para casa e para a sua família...

E eu? Bem, eu sobrevivi, apesar de todas as mudanças. Como o Fred, eu me isolei de quase todos - sou madrinha do filho de Danubia e Biel. Ela sempre me pergunta do Fred, do porquê eu não dar uma chance de tentar ser feliz com ele. E eu lhe explico pela enésima vez que eu simplesmente não consigo, pois é muito difícil estar com alguém que me recorda uma infância maravilhosa e uma adolescência desastrosa, simplesmente porque  nós dois optamos por nos manter à parte do que estava acontecendo. Intimamente eu o culpo, e me culpo também. E agora, não sei o que faço da minha vida, não sei o que ser quando crescer.

Eu disse crescer? Esqueci, já sou grande e agora preciso encarar todos os problemas que tenho...


*Obs: texto de 1999 para trabalho de Psicologia sobre "Período de Desenvolvimento" - atualizado