Parte III - Carrinho
Entrar para o time de futebol da
escola foi libertador. Treinávamos quase todos os dias e quando não, jogávamos
no play ou na rua. A Memê era ótima, incentivava e dava broncas na galera; na
escola nosso time era misto, dividido em subequipes para os jogos internos, e até os garotos respeitavam ela. Aumentei minha cartela de amigos – e com
isso as garotas da Gina tornaram-se meras conhecidas – no entanto não grudei
na Memê feito chiclete: o futebol era a única coisa que tínhamos em comum: depois
dos treinos ou de uma partida, cada uma seguia seu lado. Conversávamos
geralmente entre um jogo e outro, ou durante a celebração de alguma vitória;
ela me perguntava como eu estava, se passava bem, ou, caso eu houvesse
comentado algum problema numa conversa anterior, ela retomava o assunto,
bastante atenciosa. Porém, nunca dava brechas para que o foco fosse ela; eu,
por outro lado, nunca me preocupei em saber mais.
Os boatos começaram tal qual a missão
hitleriana para difamar judeus: de maneira sutil. Eram cochichos por onde ela
passava, desenhos pejorativos que circulavam por baixo das carteiras, pichações
nas paredes, principalmente quando ela derrotava o time de alguém nas partidas
internas. Eu ficava preocupada, mas ela não demonstrava abalo algum: cruzava os
corredores exalando sua eterna autoconfiança, conversando alegremente com quem estivesse
em sua companhia. Por vezes alguém apontava para um desenho novo e ela ria,
pegava uma caneta e ainda retocava um detalhe aqui ou ali.
– Você acha que ela é isso que dizem
por aí? - perguntou-me o Binho “Sorte de Principiante”,
outro amigo que conquistei com o futebol e cuja relação era até mais próxima
que a com Memê. Eu dei de ombros, pois era evidente a tentativa de
desmoralizá-la, já que era rainha em campo. Ainda assim, fiquei me questionando
se o fato dela ter outras preferências mudaria minha forma de tratá-la.
Não mudei, mas as outras meninas sim.
Bastava Memê chegar ao vestiário para todas se cobrirem e discretamente
deixarem o espaço. Apesar de se mostrar indiferente, ela tinha bastante ciência
do que estava acontecendo.
– Se vocês têm problemas comigo
resolvam comigo, mas não descontem no nosso time! – bradou pelos corredores
quando perdemos uma partida importante. O climão no vestiário piorou; as
fofocas já atingiam a equipe. Por alguma razão achei que seria bom intervir e
um dia, quando cruzei com ela no banheiro feminino, falei o que pensava:
– Memê, acho bom você ir conversar com
o treinador, não podemos continuar assim!
Silêncio no banheiro. Ela terminava de
se vestir e me olhava através do espelho, curiosa.
– O Binho não tem condições de ser o
capitão, são três derrotas consecutivas, cinco no total do semestre. E a menos
que queiramos continuar sendo um time de derrotados, precisamos reverter isso.
– E você sugere o quê?
– Que você seja a capitã do time.
Todos aqui sabemos que você tem talento e é a melhor de nós para isso, de toda
equipe, inclusive dos meninos.
Sentia os olhares das meninas em nós, principalmente
as que não eram do time. Eu precisava restabelecer a autoconfiança da Memê,
ainda que ela não admitisse o abalo, e reforçar a importância dela na condução
da equipe.
– Brisa, não é um capitão que faz um
time, são todos. Se a galera não estiver interessada, podem estar os melhores
craques do mundo que a equipe não vai pra frente. O que precisamos é de
motivação e mais treinamento.
– Podemos ficar mais meia hora depois
dos treinos – disse uma das meninas, deixando claro que a conversa estava sendo
ouvida
– E treinar mais as técnicas de defesa
– falou outra
As ideias foram surgindo, com mais
meninas do time se aproximando. Fizemos a reunião dentro do banheiro mesmo,
depois juntamos os meninos e fomos até o treinador. Expusemos todas as
propostas, inclusive a ideia que tive de tirar a braceleira do Binho – ele pareceu
ficar chateado comigo, mas nada disse. Com a autoestima restabelecida e mais
empenhados, voltamos a jogar melhor, mesmo não vencendo.
Mas a história da reunião no banheiro
rolou de boca em boca e tomou proporções inesperadas:
Na semana seguinte, eu era a namorada
dela.
Enquanto eu fiquei chocada, Memê tirou
sarro da situação, dizendo que eu não fazia o seu tipo. O meu grupinho de
amigos em sala de aula também entendeu que era mais uma forma de abalar o
time. No entanto, além das zoações na escola, tive que aturar a Gina e as
amigas dela caçoando de mim no condomínio.
A fofoca, porém, durou pouco tempo. Um
dia aguardava no pátio a hora do treino quando uma enorme algazarra se formou
no portão de saída. Vi o inspetor passar arrastando Memê pelo braço, enquanto
outra professora conduzia uma garota mais velha – aquela na qual ela se
debruçara quando me tornei a revelação futebolística da escola. Perguntei a uma das meninas próxima
a mim o que estava acontecendo.
–
Você não soube? Tua namorada te traiu com outra.
Aí
eu descobri o motivo da confusão: Memê fora flagrada aos beijos com outra
menina em um canto da escola.
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