Parte II - Futebol é coisa de...?
Não me tornei a melhor amiga de Memê naquele episódio da boneca; sendo bem sincera acho que nunca o fui. Aconteceu que passei a observá-la mais, sempre pensando nas poucas coisas que me disse. Por causa disto, ir brincar com Gina e seu séquito foi perdendo a graça, ainda mais que insistiam em brincar de “Barbie” só para poderem dividir a minha boneca entre elas. Até o dia que eu não quis brincar: pedi que avisassem quando tivessem outra coisa para fazer. A Gina, de raiva, mudou a brincadeira, mas proibiu as meninas de me chamarem. Fiquei em casa vendo televisão muitas tardes depois. Só percebi que havia sido excluída do grupo quando, numa tarde em que faltou luz somente na minha casa, pulava corda no play com algumas das garotas quando a Gina chegou do balé. Ela ficou ali parada, olhando aborrecida para nossa direção. Aos poucos, as meninas foram saindo da brincadeira e para cumprimentá-la.
– Vamos lá para casa, minha mãe vai fazer refresco para o lanche! – chamou
ela. As meninas a seguiram e quando fui acompanhá-las fui barrada.
– Você não! – ela me disse, zangada. E sorrindo para as outras como se
nada tivesse acontecido, seguiram para seu apartamento, deixando-me sozinha no
play.
Ah, eu chorei pra caramba! E só não chorei mais porque achei um absurdo
que me vissem chorando – ainda tinha meu orgulho! Não havia nada para fazer em
casa então fiquei ali com a corda nas mãos, tentando pular pateticamente, a fim
de que o esforço me distraísse do choro. Foi quando Memê atravessou o play, com
aquele jeito de menino-jogador-de-futebol. Estava tão furiosa que xingou um
palavrão cabeludíssimo (esqueci de mencionar que ela era muito, muito
desbocada!) e jogou a bola que estava em suas mãos na minha direção,
assustando-me.
– Oh meu Deus acertei você? Por favor, me desculpe... – desesperou-se
ela, indo para perto de mim – Não chora... Onde machucou?
– Não me acertou, eu defendi... Estou triste por outra coisa...
Ela olhou para os lados e percebeu o pátio vazio.
– As meninas te deixaram de lado de novo, não é?
Fiz que sim com a cabeça.
– Aff... – bufou ela, mas percebendo que eu estava realmente magoada não
disse nada; apenas ficou ali do meu lado, entre penalizada e irritada. Parecia
que algo brigava dentro dela, pois abriu e fechou a boca umas três vezes, sem
que nada saísse. Ate que levantou-se, foi até a bola e gritou:
– Então, me mostra esse lance de novo? – e deu o um chutão na bola, em minha direção.
– ‘Tá maluca?? – gritei com ela, depois de golpear a bola de qualquer jeito.
– Caracas... tu é boa nisto! Faz outra vez?
– Fazer o que?
Aí ela explicou: estava furiosa porque seu treinador dissera que ela era
ruim nos pênaltis e que precisava treinar mais.
– Você pode defender para mim?
– Você vai chutar igual fez agora?
Ela riu do meu desespero
– Não... Talvez um pouco mais fraco.
Ela começou a chutar e eu a defender. De início os chutes eram leves,
depois ela começou a colocar impulso neles. Deixei um ou dois passarem.
– Você é realmente boa! Já pensou em jogar no time da escola?
– Claro que não! Futebol é coisa de menino... – falei, até que dei de
cara com ela e suas sobrancelhas arqueadas – quer dizer... Não, nunca pensei.
– Pois deveria! Praticar esportes faz bem para o corpo, além de ocupar a
mente. Melhor do que ficar choramingando por amigos que não se tem!
Ui! Eu poderia ter dormido sem esta, eu sei. Entretanto serviu para que
eu aprendesse a dar valor a mim mesma, a quem realmente se importa comigo.
Depois disso perdi o interesse em ficar no play, brincava em casa
sozinha, criando meu próprio mundo de sonhos, ao mesmo tempo em que reforçava
meus laços de amizade na escola. Passaram-se alguns dias até que tornasse a
falar com Memê, uma vez que as nossas ocupações dia a dia, tão distintas,
impedia de nos cruzarmos. Ela estava focadíssima no futebol, sempre disputando
um torneio aqui e outro acolá; quando não, jogava com os meninos da vizinhança.
Eu havia descoberto o mundo da leitura e ficava horas e horas em casa afundada
em um livro: enquanto as garotas ansiavam por novas bonecas ou sandálias com
glitter e outros frufrus, eu queria a coleção do Sítio do Pica-pau Amarelo.
Bem, a coleção era tão cara quanto a Barbie; ganhei outra boneca
"Chuquinha", mas já havia aprendido que o que eu tinha era o melhor
que eu poderia ter.
Até que um dia, nas
férias, quando desta vez faltara luz no condomínio todo, fui para o pátio ler –
estava quente demais em casa. Algumas mulheres que não podiam ver suas novelas
e seus programas de fofoca faziam novelo com a vida dos outros, criando seu
próprio programa. As meninas estavam lá, com seus belos presentes de Natal, e
eu, com um livro “sequestrado” da biblioteca da escola – ele seria devolvido
sem precisar de resgate quando as aulas retornassem! Os meninos jogavam bola
como sempre.
E Memê no meio
deles.
– Brisa?! – chamou ela – Tá fazendo o quê?
Apontei para o livro.
– Vem jogar com a gente, está faltando um no meu time!
– “'Tá maluca Memê?” – ouvi um garoto sussurrar, mas ela respondeu-lhe
com um “cala a boca” e o garoto engoliu suas opiniões. Isso era outro fato
interessante da Memê: ela tinha a liderança nata em seu olhar, não precisava de
chantagens como a Gina. Ela falava e os outros obedeciam.
Deixei meu livro no canto e fui jogar. Vi os risinhos de satisfação do
time adversário e o olhar de preocupação da minha equipe. Ia ser um massacre, e
eu, o “boi de piranha” da história.
– Você vai ficar no gol. É só fazer o que fez naquele dia comigo, eles
não chutam tão forte quanto eu.
Não foi fácil. O time adversário abriu com diferença de 3 gols. Eu tinha
medo deles, o seu olhar me deixava desconfortável. Enquanto meu time me
xingava, Memê só olhava para mim, inexpressiva. Depois do quarto gol da outra
equipe, ela foi até as balizas conversar comigo.
– Brisa, o time somos só eu e você. Os garotos não são muito bons, e eu
não posso estar no ataque e na defesa ao mesmo tempo. É só um jogo, uma
brincadeira, mas eu preciso treinar para o time da escola. Segura a defesa para
mim, por favor!
Eu respirei fundo...
... E dei o máximo que eu podia!
Nosso time perdeu não porque o adversário fez mais gols depois mas sim porque o goleiro deles era muito bom. Depois que ela falou comigo, passei a imaginar um monte de "Memês" no campo e ficou mais fácil segurar as bolas que vinham. Arrisquei até um chute a gol da minha base, mas o goleiro defendeu. Ainda assim todos olharam na minha direção, com pontos de interrogação na testa. Apenas Memê sorria.
– Olhem para a bola pô! – ousei gritar para o time, louca para deixar de
ser o foco de suas atenções. Nosso time fez gols, todos de Memê, mas não deu
para virar o placar.
– Sorte de principiante! – disse aquele garoto que questionou minha
entrada no time. Seus lances eram bons, mas não foram suficientes para balançar
a rede!
Na escola, aquele mesmo grupinho que jogava no condomínio se reuniu num
daqueles dias em que os professores resolvem cuidar de suas vidas em vez de vir
dar aula. O professor de Educação Física se viu às voltas com três turmas
diferentes: resolveu deixar fazer o que quisessem! Os garotos mais velhos
tomaram posse da bola e do campo para uma partida de futebol (e fiquei com pena
dos meninos da minha turma, que imploravam atenção durante a escalação dos
times). Para as meninas não ficarem ociosas, o professor separou uma área da
quadra para um jogo de queimada. Todos sabem como é queimada na escola, logo eu
e minhas colegas de classe nem cogitamos participar!
Foi quando ouvi chamarem meu nome.
- Brisa?! Você está no meu time. Vai para o gol.
Era o garoto do condomínio, o “Sorte de principiante”.
Sabe aquele momento em que tudo silencia e todos parecem se mover em
câmera lenta? Pois, é... Até as meninas que selecionavam o time de queimada
pararam. O pessoal da minha turma era a mais jovem naquele campo, ninguém fora
chamado para nada e eu estava lá, a caminho do gol. Uma explosão de gargalhadas
veio do time adversário, quando um grito fora da quadra a silenciou.
– Vai lá Brisa! Arrasa eles!
Era a Memê.
Ela estava ao lado de uma garota mais velha, do ensino médio e era a
primeira vez que eu a via no meio de outras meninas. Eu deveria ter reparado
que aquela não era uma garota qualquer para a Memê, mas estava tão absorta em
minha situação que aquele primeiro indício passou despercebido. Eu
caminhava para o gol como quem ia para a forca. Não conhecia aqueles caras, não
sabia como jogavam. Resultado: deixei passar um bocado de gols. Mais uma vez o
time adversário zombava de mim e meu time queria me comer viva. Chamei o garoto
que me convocou, pois eu queria sair do jogo.
– Olha, eu sei que você joga bem, mas se não joga, tenta fazer o mesmo
milagrezinho daquela tarde, está bem?
E eu fiquei lá, diante de um pênalti.
– Segura essa p#&%@ Brisa! – gritou Memê lá de fora.
O adversário chutou.
E eu defendi.
Ela gritou tanto que chamou de novo a atenção do povo para o jogo, que
já havia perdido o interesse. Preciso explicar que a quadra de nossa escola
fica próxima ao pátio de intervalo, ou seja, a turma que estiver livre pode
assistir o que está acontecendo lá – facilitando a atualização dos vexames da
semana e permitindo que as meninas mais velhas possam admirar seus paqueras!
Outros alunos pararam para ver o jogo, a multidão crescia ao redor da quadra,
mas eu parei de me importar. Eu podia fazer aquilo, talvez não tão bem quanto
esperassem, mas o melhor que dava para fazer. Cumpri meu papel: defendi todas
as jogadas seguintes. Minhas defesas eram por vezes patéticas, mas a galerinha
da minha classe começou a torcer por mim – afinal, era a única da turma em campo,
e ainda que isto fosse humilhante para os meninos, nossa classe tinha um
princípio de cooperação que não se encontra hoje em dia. A algazarra foi
chamando a atenção e me motivando.
– Este é o seu truque né “principiante”? Deixá-los pensar que podem
ganhar e depois dar-lhes uma surra! – comentou o menino, sorrindo.
– Brisa. Meu nome é Brisa! – respondi, mas de forma divertida. Estava
tão feliz com aquele comentário que chutei a bola forte demais: ela atravessou
a quadra e parou na rede.
Gol.
Meu.
Só houve um grito, vindo de fora da quadra!
- Arrasou Brisaaaaaaaaa!
Aí a galera explodiu em palmas e vivas enquanto o time adversário e meu
próprio time olhavam para mim como se eu fosse um ser sobrenatural. O professor
apitou o fim da partida, e o pessoal da minha turma veio me cumprimentar. Em
meio a tantos apertos de mão, tapinhas nas costas e mexidas no cabelo, lancei
um olhar além da quadra à procura da Memê. Ela já estava de costas, à caminho
de um lugar qualquer com os braços jogados sobre os ombros daquela garota
estranha, enquanto esta enlaçava sua cintura preguiçosamente. Pareceu que Memê
acariciou-lhe o cabelo e ela inclinou a cabeça em sua direção: Memê virou-se,
beijou-lhe o ombro e repousou ali. Mas fui tomada pela turma curiosa e não consigo
ter certeza se realmente vi isto ou se o que aconteceu com elas depois me fez
criar esta memória.
– Brisa, você é do sexto ano A certo? – perguntou-me o professor. Fiz
que sim com a cabeça – ‘Tá bem... treino amanhã depois da aula. Vamos fazer uma
avaliação.
Eu estava sendo convocada para fazer parte do time da escola.
No dia seguinte fiz a avaliação.
Resultado?
Entrei para o time.
Futebol também é coisa de menina!