quinta-feira, 28 de abril de 2016

A Namorada Dela

Parte II - Futebol é coisa de...?



       Não me tornei a melhor amiga de Memê naquele episódio da boneca; sendo bem sincera acho que nunca o fui. Aconteceu que passei a observá-la mais, sempre pensando nas poucas coisas que me disse. Por causa disto, ir brincar com Gina e seu séquito foi perdendo a graça, ainda mais que insistiam em brincar de “Barbie” só para poderem dividir a minha boneca entre elas. Até o dia que eu não quis brincar: pedi que avisassem quando tivessem outra coisa para fazer. A Gina, de raiva, mudou a brincadeira, mas proibiu as meninas de me chamarem. Fiquei em casa vendo televisão muitas tardes depois. Só percebi que havia sido excluída do grupo quando, numa tarde em que faltou luz somente na minha casa, pulava corda no play com algumas das garotas quando a Gina chegou do balé. Ela ficou ali parada, olhando aborrecida para nossa direção. Aos poucos, as meninas foram saindo da brincadeira e para cumprimentá-la.
– Vamos lá para casa, minha mãe vai fazer refresco para o lanche! – chamou ela. As meninas a seguiram e quando fui acompanhá-las fui barrada.
– Você não! – ela me disse, zangada. E sorrindo para as outras como se nada tivesse acontecido, seguiram para seu apartamento, deixando-me sozinha no play.
Ah, eu chorei pra caramba! E só não chorei mais porque achei um absurdo que me vissem chorando – ainda tinha meu orgulho! Não havia nada para fazer em casa então fiquei ali com a corda nas mãos, tentando pular pateticamente, a fim de que o esforço me distraísse do choro. Foi quando Memê atravessou o play, com aquele jeito de menino-jogador-de-futebol. Estava tão furiosa que xingou um palavrão cabeludíssimo (esqueci de mencionar que ela era muito, muito desbocada!) e jogou a bola que estava em suas mãos na minha direção, assustando-me.
– Oh meu Deus acertei você? Por favor, me desculpe... – desesperou-se ela, indo para perto de mim – Não chora... Onde machucou?
– Não me acertou, eu defendi... Estou triste por outra coisa...
Ela olhou para os lados e percebeu o pátio vazio.
– As meninas te deixaram de lado de novo, não é?
Fiz que sim com a cabeça.
– Aff... – bufou ela, mas percebendo que eu estava realmente magoada não disse nada; apenas ficou ali do meu lado, entre penalizada e irritada. Parecia que algo brigava dentro dela, pois abriu e fechou a boca umas três vezes, sem que nada saísse. Ate que levantou-se, foi até a bola e gritou:
– Então, me mostra esse lance de novo? – e deu o um chutão na bola, em minha direção.
– ‘Tá maluca?? – gritei com ela, depois de golpear a bola de qualquer jeito.
– Caracas... tu é boa nisto! Faz outra vez?
– Fazer o que?
Aí ela explicou: estava furiosa porque seu treinador dissera que ela era ruim nos pênaltis e que precisava treinar mais.
– Você pode defender para mim?
– Você vai chutar igual fez agora?
Ela riu do meu desespero
– Não... Talvez um pouco mais fraco.

Ela começou a chutar e eu a defender. De início os chutes eram leves, depois ela começou a colocar impulso neles. Deixei um ou dois passarem.
– Você é realmente boa! Já pensou em jogar no time da escola?
– Claro que não! Futebol é coisa de menino... – falei, até que dei de cara com ela e suas sobrancelhas arqueadas – quer dizer... Não, nunca pensei.
– Pois deveria! Praticar esportes faz bem para o corpo, além de ocupar a mente. Melhor do que ficar choramingando por amigos que não se tem!
Ui! Eu poderia ter dormido sem esta, eu sei. Entretanto serviu para que eu aprendesse a dar valor a mim mesma, a quem realmente se importa comigo.
Depois disso perdi o interesse em ficar no play, brincava em casa sozinha, criando meu próprio mundo de sonhos, ao mesmo tempo em que reforçava meus laços de amizade na escola. Passaram-se alguns dias até que tornasse a falar com Memê, uma vez que as nossas ocupações dia a dia, tão distintas, impedia de nos cruzarmos. Ela estava focadíssima no futebol, sempre disputando um torneio aqui e outro acolá; quando não, jogava com os meninos da vizinhança. Eu havia descoberto o mundo da leitura e ficava horas e horas em casa afundada em um livro: enquanto as garotas ansiavam por novas bonecas ou sandálias com glitter e outros frufrus, eu queria a coleção do Sítio do Pica-pau Amarelo. Bem, a coleção era tão cara quanto a Barbie; ganhei outra boneca "Chuquinha", mas já havia aprendido que o que eu tinha era o melhor que eu poderia ter.
Até que um dia, nas férias, quando desta vez faltara luz no condomínio todo, fui para o pátio ler – estava quente demais em casa. Algumas mulheres que não podiam ver suas novelas e seus programas de fofoca faziam novelo com a vida dos outros, criando seu próprio programa. As meninas estavam lá, com seus belos presentes de Natal, e eu, com um livro “sequestrado” da biblioteca da escola – ele seria devolvido sem precisar de resgate quando as aulas retornassem! Os meninos jogavam bola como sempre.
 E Memê no meio deles.
– Brisa?! – chamou ela – Tá fazendo o quê?
Apontei para o livro.
– Vem jogar com a gente, está faltando um no meu time!
– “'Tá maluca Memê?” – ouvi um garoto sussurrar, mas ela respondeu-lhe com um “cala a boca” e o garoto engoliu suas opiniões. Isso era outro fato interessante da Memê: ela tinha a liderança nata em seu olhar, não precisava de chantagens como a Gina. Ela falava e os outros obedeciam.
Deixei meu livro no canto e fui jogar. Vi os risinhos de satisfação do time adversário e o olhar de preocupação da minha equipe. Ia ser um massacre, e eu, o “boi de piranha” da história.
– Você vai ficar no gol. É só fazer o que fez naquele dia comigo, eles não chutam tão forte quanto eu.
Não foi fácil. O time adversário abriu com diferença de 3 gols. Eu tinha medo deles, o seu olhar me deixava desconfortável. Enquanto meu time me xingava, Memê só olhava para mim, inexpressiva. Depois do quarto gol da outra equipe, ela foi até as balizas conversar comigo.
– Brisa, o time somos só eu e você. Os garotos não são muito bons, e eu não posso estar no ataque e na defesa ao mesmo tempo. É só um jogo, uma brincadeira, mas eu preciso treinar para o time da escola. Segura a defesa para mim, por favor!
Eu respirei fundo...
... E dei o máximo que eu podia!
 
Nosso time perdeu não porque o adversário fez mais gols depois mas sim porque o goleiro deles era muito bom. Depois que ela falou comigo, passei a imaginar um monte de "Memês" no campo e ficou mais fácil segurar as bolas que vinham. Arrisquei até um chute a gol da minha base, mas o goleiro defendeu. Ainda assim todos olharam na minha direção, com pontos de interrogação na testa. Apenas Memê sorria.
– Olhem para a bola pô! – ousei gritar para o time, louca para deixar de ser o foco de suas atenções. Nosso time fez gols, todos de Memê, mas não deu para virar o placar.
– Sorte de principiante! – disse aquele garoto que questionou minha entrada no time. Seus lances eram bons, mas não foram suficientes para balançar a rede!

Na escola, aquele mesmo grupinho que jogava no condomínio se reuniu num daqueles dias em que os professores resolvem cuidar de suas vidas em vez de vir dar aula. O professor de Educação Física se viu às voltas com três turmas diferentes: resolveu deixar fazer o que quisessem! Os garotos mais velhos tomaram posse da bola e do campo para uma partida de futebol (e fiquei com pena dos meninos da minha turma, que imploravam atenção durante a escalação dos times). Para as meninas não ficarem ociosas, o professor separou uma área da quadra para um jogo de queimada. Todos sabem como é queimada na escola, logo eu e minhas colegas de classe nem cogitamos participar!
 Foi quando ouvi chamarem meu nome.
 - Brisa?! Você está no meu time. Vai para o gol.
Era o garoto do condomínio, o “Sorte de principiante”.
Sabe aquele momento em que tudo silencia e todos parecem se mover em câmera lenta? Pois, é... Até as meninas que selecionavam o time de queimada pararam. O pessoal da minha turma era a mais jovem naquele campo, ninguém fora chamado para nada e eu estava lá, a caminho do gol. Uma explosão de gargalhadas veio do time adversário, quando um grito fora da quadra a silenciou.
– Vai lá Brisa! Arrasa eles!

Era a Memê.

Ela estava ao lado de uma garota mais velha, do ensino médio e era a primeira vez que eu a via no meio de outras meninas. Eu deveria ter reparado que aquela não era uma garota qualquer para a Memê, mas estava tão absorta em minha situação que aquele primeiro indício passou despercebido. Eu caminhava para o gol como quem ia para a forca. Não conhecia aqueles caras, não sabia como jogavam. Resultado: deixei passar um bocado de gols. Mais uma vez o time adversário zombava de mim e meu time queria me comer viva. Chamei o garoto que me convocou, pois eu queria sair do jogo.
– Olha, eu sei que você joga bem, mas se não joga, tenta fazer o mesmo milagrezinho daquela tarde, está bem?
E eu fiquei lá, diante de um pênalti.
– Segura essa p#&%@ Brisa! – gritou Memê lá de fora.

O adversário chutou.
E eu defendi.

Ela gritou tanto que chamou de novo a atenção do povo para o jogo, que já havia perdido o interesse. Preciso explicar que a quadra de nossa escola fica próxima ao pátio de intervalo, ou seja, a turma que estiver livre pode assistir o que está acontecendo lá – facilitando a atualização dos vexames da semana e permitindo que as meninas mais velhas possam admirar seus paqueras! Outros alunos pararam para ver o jogo, a multidão crescia ao redor da quadra, mas eu parei de me importar. Eu podia fazer aquilo, talvez não tão bem quanto esperassem, mas o melhor que dava para fazer. Cumpri meu papel: defendi todas as jogadas seguintes. Minhas defesas eram por vezes patéticas, mas a galerinha da minha classe começou a torcer por mim – afinal, era a única da turma em campo, e ainda que isto fosse humilhante para os meninos, nossa classe tinha um princípio de cooperação que não se encontra hoje em dia. A algazarra foi chamando a atenção e me motivando.
– Este é o seu truque né “principiante”? Deixá-los pensar que podem ganhar e depois dar-lhes uma surra!  – comentou o menino, sorrindo.
– Brisa. Meu nome é Brisa! – respondi, mas de forma divertida. Estava tão feliz com aquele comentário que chutei a bola forte demais: ela atravessou a quadra e parou na rede.

Gol.
Meu.

Só houve um grito, vindo de fora da quadra!
 - Arrasou Brisaaaaaaaaa!

Aí a galera explodiu em palmas e vivas enquanto o time adversário e meu próprio time olhavam para mim como se eu fosse um ser sobrenatural. O professor apitou o fim da partida, e o pessoal da minha turma veio me cumprimentar. Em meio a tantos apertos de mão, tapinhas nas costas e mexidas no cabelo, lancei um olhar além da quadra à procura da Memê. Ela já estava de costas, à caminho de um lugar qualquer com os braços jogados sobre os ombros daquela garota estranha, enquanto esta enlaçava sua cintura preguiçosamente. Pareceu que Memê acariciou-lhe o cabelo e ela inclinou a cabeça em sua direção: Memê virou-se, beijou-lhe o ombro e repousou ali. Mas fui tomada pela turma curiosa e não consigo ter certeza se realmente vi isto ou se o que aconteceu com elas depois me fez criar esta memória.
– Brisa, você é do sexto ano A certo? – perguntou-me o professor. Fiz que sim com a cabeça – ‘Tá bem... treino amanhã depois da aula. Vamos fazer uma avaliação.
Eu estava sendo convocada para fazer parte do time da escola.
No dia seguinte fiz a avaliação.

Resultado?

Entrei para o time.


           Futebol também é coisa de menina!

sexta-feira, 15 de abril de 2016

A Namorada Dela

Parte I - A Boneca


            Estou com saudades da minha amiga Memê. Se eu soubesse por onde ela anda, eu enviaria uma carta, um e-mail...Mas Memê nunca me diz onde está, apenas recebo seus postais algumas vezes por ano, sem que eu possa respondê-la. É melhor do que nada, eu sei. Ainda assim, gostaria de escrever para ela.
     
         Conheci Memê quando sua família mudou-se para o nosso condomínio – na verdade, um daqueles conjuntos habitacionais precários que o governo concede aos moradores quando a imprensa pressiona sobre algum desastre na favela! Eu tinha oito anos, ela dez. Além de mais velha, mais alta, mas não se podia dizer que era bonita: magricela, tinha um cabelo comprido, de um tom loiro sujo, uns olhos grandes esverdeados e a pele curtida de sol. Memê poderia ser modelo se quisesse, não pela beleza, como eu disse, mas pelo seu porte: havia nela uma segurança, um domínio de presença que calava qualquer desavença, qualquer assunto que estivesse sendo discutido quando ela passava. Era uma menina, mas parecia ter toda a vivência de uma pessoa antiga. Pouco se importava com a própria aparência, vestia-se largada como um menino, e assim ninguém reparava muito nela no quesito "beleza exterior". Se bem que quando chegou, as meninas do condomínio ficaram um pouco inseguras, e fizeram o que todos fazem quando se sentem ameaçados: atacaram. Como ela não ligou para seus comentários, as meninas a deixaram em paz.
  
         Só fui conversar com a Memê quase um ano depois de sua chegada – antes eram apenas aqueles comprimentos educados, ou nem isso. Naquele dia, Gina, "a Dona do Play", resolveu que só iriam brincar aquelas que tivessem "Barbie". Eu não tinha a tal boneca, até as falsas eram caras demais. Estava no corredor do meu andar, olhando elas brincarem no play quando Memê chegou: meião até os joelhos, chuteiras no lugar das sandalinhas cor de rosa que toda menina usava, bermudão, top, a blusa do uniforme amarrada na mochila e um walkman com fones de arco de metal nos ouvidos. Trocamos olhares enquanto ela destrancava a porta. Entrou, saindo meia hora depois, com cheiro de sabonete e colônia. Fato que já tinha um compromisso, mas mudou de ideia e veio debruçar-se no peitoril do corredor comigo.
            
          – O que está acontecendo lá embaixo? – quis saber. Sua voz era determinada, e me fez sentir menor do que eu estava me sentindo.
– Uma festa da Barbie.
– E você não foi convidada?
– Não. Só pode ir quem tem Barbie e eu não tenho.
Silêncio
– Você gostaria de ir?
– Claro! Todas as minhas amigas estão lá!
Memê olhou diretamente para mim, séria. Naquele instante parecia muito adulta, não pela severidade do olhar, mas pela sinceridade que expressava:
– Se as pessoas que você diz serem suas amigas fossem suas amigas de verdade, iriam gostar de você pelo que você é e não pelo que você tem. Muito menos dariam uma festa e proibiriam você de entrar.
Naquela hora pensei: “quem é esta garota metida a besta para falar assim das minhas amigas?”. Mas Memê me olhava tão seriamente que engoli a frase, e tornei a mirar o playground, aborrecida. Um tempo depois senti um tapinha nas minhas costas:

– Vem, acho que posso te arrumar um “convite”.

Eu não entendi muito bem o que ela quis dizer, mas após insistir que eu fosse a sua casa, concordei em seguí-la. Memê morava com a avó, D. Dora, senhora simpática que costumava distribuir doces no dia de São Cosme e São Damião. “E não se esqueçam de Dom Um”, dizia ela, macumbeira que só, o que deixava as crentes do condomínio enfurecidas! Apesar de todo discurso de que macumba era coisa do demônio, eu sempre achava que D. Dora merecia o Céu mais que algumas pessoas devotas de igrejas: ela sempre tinha um jeito doce para conversar conosco, e quando proibia algo, explicava o porquê tão bem explicadinho que a gente até se arrependia de ter pensado em fazer a tal coisa errada; as outras, por sua vez, nos chamavam de capetas pra baixo!
O apartamento de Memê e D. Dora era como qualquer outro naquela época: alguns santos espalhados na sala cor-de-rosa, cortinas de continhas, colchas de retalhos cobrindo os sofás e cheiro de coisa velha. Cumprimentei D. Dora, meio acanhada, enquanto Memê enfiou-se cortina adentro. A velha senhora assistia à novela da tarde bebendo um daqueles sucos de xarope e me ofereceu um pouco – lembro que estava delicioso, e aliviou um pouco a tensão da situação inusitada. Memê logo voltou com uma boneca... na embalagem!

– Para você!
– M-mas está novinha! Você não quer?
– Meu pai sempre me dá uma dessas, só que eu não brinco mais com bonecas. Pode levar.

Eu fiquei tão maravilhada que quando me lembrei de agradecer, Memê já havia ido embora. Desci correndo para brincar com as meninas e a Gina já ia me proibir de participar da festa, quando mostrei a boneca. As meninas ficaram fascinadas: a boneca era rara, de uma edição limitadíssima. A Gina ficou logo enciumada, e enquanto passava a festa tentando minimizar as qualidades da “minha” boneca, eu pensei sobre o que a Memê havia dito sobre amizade: ela, que nunca havia trocado uma palavra comigo, me deu um presente raro; aquelas que sempre conviveram comigo, me excluíram da brincadeira quando o que eu tinha não era suficiente para ficar por perto.
A festinha ainda acontecia quando peguei a boneca e fui para casa sem falar com ninguém, mas antes passei na casa de Memê para devolver o presente. D. Dora, cheia de bobes na cabeça e um sorriso largo no rosto, foi chama-la. Memê esfregava os cabelos recém-lavados numa toalha quando entrou na sala.

– Toma: acho que você não sabia que ela era uma boneca rara, então trouxe de volta.
– Sim, eu sei disso, por isso dei para você!
Aquilo me surpreendeu
– Ela é sua, pegue.
Eu me agarrei à boneca, pois queria muito ficar com ela. Memê abriu um sorriso e eu lhe agradeci, mas insisti em devolver.
– Sabe, você tinha razão – falei – elas gostaram mais de mim hoje só porque eu tinha uma boneca rara. Elas não são amigas de verdade!

Na manhã seguinte havia um embrulho em minha porta, com o seguinte bilhete: “A Barbie falou que você é a melhor amiga que ela gostaria de ter. Não aceito devolução”


A boneca era minha, oficialmente!

                                                           *  *  *