segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Arquimagos - Explorando Labornok

Capítulo IX - Conexão


– Ô lugarzinho feio! – gemeu Mikayla.
– Está assim porque foi mal cuidado, coisa que caberá à nova Arquimaga reparar – Fiolon disse, com ênfase no “nova” – Se ela não começar a amar esta terra provavelmente não fará um bom trabalho.

Mikayla virou o rosto: detestava esta mania de Fiolon de levar tudo ao pé da letra. Ela até poderia amar Labornok algum dia, mas não podia negar a si mesma que o lugar era feio. Feio não, esquisito, estranho. Era isso mesmo: estranho era a principal característica daquele lugar. O canto mais selvagem de Ruwenda era o que Labornok tinha de melhor. Em suas andanças anteriores já havia se dado conta que o ecossistema não vivia, sobrevivia à custa da lei do mais resistente, o que ali significava ser o organismo mais simples e mutável, como plantas miúdas e pequenos insetos. A primeira coisa perceptível em uma grande mudança neste ecossistema seria o desaparecimento destes seres, mas eles estavam lá, nas grandes camadas de musgo cobrindo as árvores e nos diversos répteis e moluscos que a jovem arquimaga só conhecera através de livros - e a má impressão que sentira quando lera tais informações só aumentou depois que colocara os pés por aquelas terras.   

“– Quer dizer que para cuidar bem das minhas terras tenho que amá-las? Você então ama mais a Var do que a Ruwenda, a terra que te abrigou?” – Mikayla provocou Fiolon dando início a uma discussão mental. Percebeu que ele ficou corado antes de resposnder
“­– Não me venha com essa! Eu gosto das duas terras por igual, a que me criou e a que me escolheu para cuidar. Não posso medi-las com pesos iguais, uma sempre terá vantagem sobre a outra dependendo do que estiver sendo mensurado!”

Mikayla emitiu um “humpft” e decidiu não falar mais nada. Argumentar com Fiolon nem sempre era divertido, ainda mais se estivessem cansados. Marchavam a vários dias enfrentando toda espécie de intempéries e diferentes temperaturas, e o pior era saber que a quilo era só o começo de uma viagem sem data definida para terminar. Saíram das Montanhas Ohogan caminhando junto com os vispis até o sopé das montanhas do lado labornokiano, sempre seguindo em sentido norte. Fiolon achou melhor dispensar os guardas e seguirem como andarilhos. Não faziam ideia do que encontrariam pelo caminho e um guia local poderia passar informações mais precisas das necessidades da terra. Mikayla bem que tentou utilizar-se da mesa de areia e dos artefatos tecnológicos que ganhou de herança da arquimaga, mas não deu certo: a mesa de areia ainda estava incompleta, e o “espelho mágico” distinguia somente manifestações naturais como terremotos, avalanches, e enchentes; algo sutil como a derrubada de algumas árvores aqui ou o surgimento de uma praga que matasse animais e plantas acolá passariam despercebidos. Ainda assim, traçaram uma rota que contemplaria grande parte do território que ainda não fora explorado por eles, partindo da Torre Branca até Derorguila, a antiga capital de Labornok que agora só atua como uma importante cidade litorânea. Mikayla esqueceu qual dos seus irmãos governava por lá. 

Estava anoitecendo quando chegaram aos limites suportáveis aos guias vispis. O ar das florestas labornokianas não era pesado como as de Ruwenda, porém os guias preferiam não se afastar tanto de sua região: disseram que aquelas terras estavam amaldiçoadas, “produzindo gente que não era gente”. Não falaram nada além disso e os arquimagos apenas registraram a informação para futuras investigações. Eles encontraram uma clareira para pernoitarem; no dia seguinte, os guias voltariam para suas casas

– O que houve Mika? – Quis saber Fiolon, ao ver a jovem estática. Alguma coisa a incomodava, uma estranha sensação de estar sendo observada. Ela já vivera algo semelhante quando foram atacados por filhotes de skitreks na infância, mas ali não era território deles. Além disso, seus froniais não davam sinais de captarem ameaça. Ainda assim, o silêncio que se abateu sobre eles obrigou-a a desmontar e a expandir a mente, a fim de alcançar o responsável pelo que quer que fosse.

Tão logo seus pés tocaram o solo tudo mudou de cor e Mikayla pode sentir toda a vida que emanava daquele lugar. Fiolon acompanhava cuidadosamente o seu transe, observando-a: ela permaneceu um longo tempo abaixada, analisando o solo, depois, caminhou vagarosamente até uma moita espinhenta, onde descobriu botões de rosa-branca; em seguida, revirou um tronco coberto de musgos de onde retirou um assustada corumela, uma espécie de coruja. O animal tremia em suas mãos, mas ela acariciou seu pelo enquanto murmurava palavra inaudíveis e ele se acalmou.

–“Sente isto Fio?”
–“Não. O que está fazendo?”
–“Una-se a mim e veja” .

O rapaz o fez. Num instante, sua mente tornou-se uma profusão de imagens e sensações. Ainda estava no mesmo lugar, mas parecia que o universo inteiro estava ali, através de um intrincado ecossistema. Sentia o pulsar da vida na seiva que corria pelos galhos que à pouco julgara secos. Viu as formigas de fogo estáticas em fila como se à espera de alguma ordem. Pôde perceber ao seu redor os olhos dos diversos animais escondidos naquela mata, observando-os, não para atacá-los, compreendeu enfim, mas para admirá-los. E no centro de tudo estava Mikayla, soberana entre eles.

–“Fiquem tranquilos meus amigos, eu vou cuidar de vocês!” – Mikayla prometeu.

Então tudo que era microcosmo fundiu-se, tornando-se uma só coisa, um só corpo, o corpo da jovem de cabelos vermelhos. E com a mesma rapidez todo aquele ambiente tratou de voltar ao normal: as formigas de fogo voltaram a seguir em fila, os coelhos de chifres voltaram para suas tocas, os lagartos alados voaram em direção ao leito de algum rio, enfim... todos os animais retornaram à sua rotina, agora para sempre alterada pela presença da arquimaga. Ao sair do transe, o sorriso de ponta a ponta dela nunca fora tão contagiante:


– Esta terra não é linda?


sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Arquimagos - Casamento de Arquimagos

Fanfic baseada na obra A Senhora do Trílio, de Marion Zimmer Bradley.

Capítulo VIII - Vistoria

        A Cidade de Tass amanheceu bastante movimentada. A primavera estava em seus dias derradeiros, o que significava tempos de chuva a caminho; assim eram os verões em Ruwenda, quentes e bastante úmidos. Chovia quase todos os dias no meio da tarde, o que tornava o trabalho dos ambulantes e feirantes quase impraticável, por isso desesperavam-se para eliminar o maior número de mercadorias possíveis, principalmente as perecíveis. 
                
     Aquela movimentação toda encantava Mikayla. Achou que adquirira uma repulsa a multidões quando se incomodara com os nobres no castelo, mas daquela multidão ela gostava. Há dias ela e Fiolon estavam navegando rio abaixo e aquele fora o primeiro porto em que desembarcaram. Levavam consigo pouquíssimas provisões já que não haviam estradas decentes para transitar com grandes volumes entre Ruwenda e Var: um enorme desfiladeiro separava a Cidade de Tass da Floresta Tassaleyo e o caminho por ali era no estilo lá-vai-um. Quando estão com maiores provisões, os viajantes seguem um longo pergurso contornando o desfiladeiro e alcançando a parte menos elevada da fronteira (quase adentrando o Reino de Zinora), aumentando o tempo de viagem em alguns dias. . Como Fiolon tinha pressa de apresentar a sua moradia oficial em Let à princesa, os arquimagos decidiram descer o desfiladeiro. Somente dois guardas acompanhavam o casal, que não queria se passar por nobres; e uma vez que seus rostos não eram tão conhecidos, misturavam-se facilmente entre o povo humano e as tribos odlings.
                
      Da janela de seu quarto, localizado no segundo andar de uma hospedaria para comerciantes, Mikayla olhava o ir e vir do povo nas vielas e nas ruas. Os humanos e as tribos circulavam pacificamente entre si e aquela mistura dava-lhe paz. Seus dezoito anos de vida dividiram-se em vida na corte, idas para os pântanos a fim de explorar e, nos últimos seis anos, no convívio com o gelo das montanhas. As viagens às cidades como substituta da arquimaga ocorriam á noite, quando os povos estavam dormindo, por isso o fascínio ao estar entre eles depois de tantos anos. Divertia-se com aquela intensidade: aspirou fundo para captar os cheiros que vinham da rua... e desmaiou!
         
          Voltou a si abrindo os olhos devagar, tentando reconhecer o ambiente a sua volta. Estava na cama, e uma voz estranha falava no vestíbulo.
           
           – Ela ficará bem. Só precisa descansar e alimentar-se melhor. O senhor disse que vieram das montanhas? Bem a diferença de pressão no ar costuma afetar que está à caminho de lá não o contrário...
          – Já estamos nas partes baixas há bastante tempo...
          – Temo realmente ser o principio de uma subnutrição, ela é muito magra para a idade que tem... Quantos anos disse?
– Dezoito.
– Dezoito, certo...

“Droga, Fiolon vai me atormentar por causa da minha alimentação. Melhor fingir que ainda estou dormindo"
"Eu sei que está acordada! Já falo com você"
Após alguns minutos o ambiente ao lado se aquietou e a voz controlada do arquimago penetrou seus ouvidos.
– Abra os olhos e me diga o que aconteceu.
"Estou bem marido, obrigada!", Mikayla pensou, enquanto se sentava na cama . Fiolon revirou os olhos e bufou, mas sua expressão suavizou e foi sentar-se na cama ao lado da arquimaga. pararesponder e imaginou que tivesse saído.
– Como se sente?
– Bem, eu acho... O que aconteceu comigo?
– Eu a encontrei jogada no chão, de olhos abertos. Eu me desesperei porque não conseguia alcançar seus pensamentos. Agora consigo ouvir você bem, e a sensação de nada passou... é bom tê-la em minha mente de novo - ele sorriu. - Foi alguma coisa com a terra?
– Oh! Pelos Senhores do ar, a terra... – Mikayla se deu conta de que desde que chegara a Cidadela não vistoriava a terra. Sentia as variações, mas não focava nelas, como aprendera a fazer. Culpou-se internamente com tamanha irresponsabilidade.
– Você esqueceu... – murmurou Fiolon, que lera a sua mente. – Tudo bem, faremos a vistoria juntos, quando você estiver mais fortalecida. Se houver algum problema em Laboruwenda uma arquimaga fraca não vai ajudar...
Porém os pensamentos de Mikayla se tornaram mais preocupantes:
– Fiolon, eu não estou morrendo, estou? Eu não posso estar: acabei de me tornar arquimaga, sou jovem, forte, saudável!
– Eeeii... De onde veio tamanha tolice? – ele a abraçou. Em seus pensamentos as lembranças das síncopes da Arquimaga Haramis passaram instantaneamente – Não é o mesmo com você está bem? Acredito mesmo que tenha sido pela mudança de ares.
– Acabamos de nos casar...
– E permaneceremos assim por um longo tempo!

Ficaram assim abraçados, cada um com suas próprias preocupações em torno do possível mal que ameaçasse a terra. Fiolon conectou-se a Var, tentando coletar alguma informação a partir dali, mas o problema certamente era no país em que se encontrava. Alguém bateu na porta, e ele lembrou dos guardas que os acompanhavam e que aguardavam notícias de Mikayla. Informou-lhes que a princesa estava bem, porém adiariam a viajem em um ou dois dias. 

Mas assim que se viu sozinha Mikayla não perdeu tempo: estendeu os braços e uniu-se à terra.

Como um pássaro que atravessa os ares, assim era a visão da arquimaga ao vistoriar suas terras. Começou de onde estava, da Cidade de Tass, e avançou até as fronteiras de Var, percorrendo toda a floresta Tassaleyo. De lá retrocedeu até a Cidadela e partiu para os pântanos Verde, Negro e Labirinto, onde viu os habitantes nyssomus. Passou pelas ruínas dos Desaparecidos, onde encontrara o colar que ela e Fiolon usam para se comunicar a longas distâncias, e avançou para as Montanhas Ohogan, eternamente cobertas de gelo. No monte Brom, avistou Enya e alguns empregados limpando o pátio para evitar que a neve cobrisse as placas solares das quais ele era feito e que sem sua energia grande parte dos artefatos tecnológicos da torre deixavam de funcionar; passou pelo Monte Gidris e seu coração estremeceu ao ver as ruínas do Templo de Merrit, destruído por Haramis, e finalmente, o Monte Brom, onde habitava seu amigo, o voor Olho vermelho, finalizava a vistoria por toda parte Ruwendiana.
“Até aqui tudo bem”, pensou Mikayla. No entanto, quando ultrapassou a antiga fronteira entre Ruwenda e Labornok sentiu um baque muito forte e por pouco não tornou a desmaiar; algo, no entanto, a manteve firme. “Aqui é o problema!”. Ela retornou devagar para o seu próprio corpo e ao chegar à Tass sentiu a presença que a ajudara a manter-se firme. Ainda semiconsciente, estendeu uma das mãos para aquela presença e pode sentir o imenso carinho que o Lorde Branco de Var lhe dispensava.
“Porque não me esperou?” Ele quis saber, tão logo as barreiras impostas por Mikayla enfraqueceram.
“Sou a Arquimaga de dois reinos; estive prestes a falhar com eles e preciso reparar isto”
“Podemos fazer isto juntos, você sabe!”
“Sim, eu sei, mas também quero fazer algo por mim mesma. Não poderei depender de você para sempre. Ainda não aprendi a controlar e entender os anseios da minha terra tanto quanto você compreende Var.”
“Eu temo que algo te aconteça”
Mikayla apertou de leve as mãos do marido. Quando abriu os olhos, plenamente consciente em seu corpo, foi recebida por um sorriso amável.
– Precisamos voltar para a torre.
– Algum problema com Ruwenda?
– Não, estas terras estão bem. Preciso me preparar para explorar Labornok.
O sorriso amável desapareceu.   


Na clareira, o grupo se reunia sob a luz do Luar. A fogueira brilhante tocava o céu, aquecendo aqueles que dançavam a sua volta. Riam e brincavam, embriagados pelo néctar da bebida ardente que queimava a garganta e lhes davam uma sensação de paz e felicidade. Sentiam-se livres, como há muito tempo não se sentiam. Seres mascarados juntaram-se a eles naquela estranha dança. Alguns ficaram hipnotizados; outros, mal repararam. De um ponto afastado, porém alto e que lhe permitia observar toda a movimentação, um par coberto com pele lupina observava. Quando todos mascarados dançavam acompanhados, aquele que tinha a pele lupina mais escura erguera os braços, dando o sinal. Lá embaixo, aqueles em volta da fogueira que se encantaram com os seres mascarados foram conduzidos para o interior da floresta, enquanto o fogo crepitava alto e os tambores ressoavam.